Rita revolucionária Lee

A imortalidade da feiticeira que encantou e inspirou gerações

Nada é mais certo do que a célebre frase “A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”[1]. O texto da semana seria outro, mas somos diariamente atravessados por inúmeros acontecimentos – bons e ruins – ao longo dos dias. Começo relendo textos já publicados na coluna e encontro este trecho: “A semana começou com uma notícia difícil de processar. Logo pela manhã, ao ler as notícias logo, fui surpreendida com a notícia de que Gal Costa tinha falecido”. Estas foram as primeiras linhas que escrevi no texto em homenagem a Gal Costa, em novembro de 2022. Nesta semana, outra mulher incrível nos deixa: Rita Lee.

A primeira lembrança que tenho de Rita é de ouvir incessantemente seu álbum Acústico MTV, recheado de hists como Agora só falta você, Doce vampiro, Desculpe o auê e Mania de você. Mais tarde, na faculdade, fui a um show da Rita no antigo Canecão. A cada entrevista, a cada álbum novo, me encantava não só pela artista, mas por uma mulher que revolucionou não só a música brasileira, como também a história.

Foram cinco décadas de arte. Rita foi a primeira mulher a tocar guitarra nos palcos brasileiros e ganhou tempos depois o título de Rainha do Rock. É importante mencionarmos isso, já que o mundo do rock – e a sociedade em geral – sempre foi machista. Para ilustrar esta questão, trago o nome de Sister Rosetta Tharpe, mulher negra, que em 1938 lança um álbum chamado Rock me e revoluciona a música. Ela é considerada a Mãe do Rock, inspirou Elvis Prestley e hoje, quem é mais conhecido? A mulher que “inventou o rock” ou Prestley?

Desde os tempos de escola, sua veia artística já se manifestava: ela fazia parte de uma banda com outras três garotas, chamada Teenage Singers, em que cantava e tocava bateria. Durante o movimento Tropicalista, entre 1968 e 1972 foi vocalista da banda Os Mutantes, expulsa após conflitos com Arnaldo Baptista, com quem se relacionou por alguns anos, ao argumento de que ela não tinha “calibre como instrumentista”. Rita não abaixaria a cabeça para ninguém. Aquela mulher forte, que estava à frente da banda, deu uma verdadeira banana para o machismo:

“Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei Danny (sua cadelinha) e adiós“. 

Rita Lee sobre a saída d’Os Mutantes
Rita Lee em foto com o grupo Os Mutantes
Rita Lee em foto com o grupo Os Mutantes

Em 1976, em plena ditadura militar, foi presa, grávida do primeiro filho, o músico Beto Lee. Segundo a versão dos policiais, foi feita denúncia sobre uso de drogas durante uma temporada de shows da banda Tutti-Frutti e encontraram maconha na casa da artista. Ela diz que a droga foi plantada. Ficou dias no órgão de repressão da ditadura militar, o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e encaminhada para o Presídio Feminino do Hipódromo. Correu risco de aborto e nada foi feito pelos agentes policiais. Foi condenada a pena de um ano de prisão – cumprida em regime domiciliar – e multa de cinquenta salários mínimos.

Rita foi uma das artistas mais censuradas pela ditadura. Seu álbum Bombom, de 1983, foi inteiramente vetado. Algumas composições foram censuradas ao argumento de que “incitavam a rebelião popular” e “infringiam a Lei de Segurança Nacional”. No entanto, engana-se quem pensa que os militares poderiam calar Rita. Inclusive, no ano da censura ao referido álbum, durante um show em Brasília, ela os desafia: “Finalmente, depois de oito anos exilada da cidade, estou de volta e venho propor minha candidatura. Sou candidata a levar alegria ao povo, que está de saco cheio desses militares que comandam o país. Para a censura eu digo, é proibido proibir”. E com Rita, eles não podiam. Em 2012, ela os enfrenta mais uma vez, parando inclusive seu show, no Festival de Sergipe[2]:

“(…) Se a polícia bater, eu vou dedar para o Brasil inteiro, denuncio e processo. Isso é força brutal. Vocês não têm o direito de usar a força na meninada que não tá fazendo nada. Esse show é meu, não é de vocês. Esse show é minha despedida do palco e vocês continuam tendo que guardar as pessoas, não tendo que agredir. Seus cachorros. Coitados dos cachorros… Cafajestes. (…) Eu sou do tempo da ditadura. Você pensa que eu tenho medo? (…) Eu sou mulher. Tenho três filhos, uma neta, 67 anos. (…) Esse show é meu, as pessoas estão me esperando cantar. Não é a gracinha de vocês, seus filhos da p**, agora vem me prender. Por causa de um ‘baseadinho’? Cadê o baseadinho para eu fumar aqui agora?”

Rita Lee, durante show no Festival de Sergipe
Rita Lee (Foto: Reprodução)

Rita ousava. Ousava desafiar uma sociedade careta, uma sociedade quadrada. Afinal, “louco é quem diz que não é feliz”[3]. Conheceu seu parceiro de música Roberto de Carvalho em 1976. Foi seu parceiro de vida, com quem teve três filhos: Beto, João e Antonio. Em uma época em que a moça deveria se casar de véu e grinalda, Rita disse, em entrevista para Marilia Gabriela: “o astral do papel eu não gosto muito”. Estar com quem se ama, de fato, independe de um papel. É uma escolha diária de querer compartilhar a vida com aquela pessoa. E ela não se casaria de “papel passado” apenas para cumprir uma “obrigação” imposta pela sociedade.

Sobre as drogas, Rita sempre falou de forma aberta sobre suas experiências. Em entrevista ao Pedro Bial, quando ele pergunta sobre maconha, ela diz: “Ah, você vai falar sobre maconha? Eu pensei que você fosse falar de café, coca-cola, açúcar, álcool…”[4] Nesta singela frase, ela expõe o que se debate acerca da legalização das drogas consideradas ilícitas. O neurocientista norteamericano Carl Hart[5], em seus dois livros, fala sobre os mitos acerca das drogas consideradas ilícitas, além do fato de que drogas como o álcool e o cigarro serem mais nocivas e, apesar disso, circularem livremente sem qualquer tipo de proibição.

Padroeira da Liberdade. Era assim que ela gostava de ser conhecida. Em 1995, abre show com uma roupa que lembra a vestimenta de Nossa Senhora Aparecida e reza uma Ave Maria antes de embalar no hit Todas as mulheres do mundo, com refrão que homenageia Leila Diniz. À época, a Arquidiocese do Rio de Janeiro se manifestou lamentando o ocorrido.

Rita Lee, como Nossa Senhora Aparecida, no Hollywood Rock de 95
Rita Lee, como Nossa Senhora Aparecida, no Hollywood Rock de 1995 (Foto: Reprodução)

Em 1997, Rita Lee lança o álbum Santa Rita de Sampa. Nele, a música Obrigado, não traz importantes temas. Além de questionar sobre a classificação de determinadas drogas como ilícitas (“por que whisky sim, por que cannabis não?”), o clipe da música traz pela primeira vez um casal de homens se beijando. Para você ter uma ideia do quão à frente este clipe estava, nas telenovelas já havia romances entre casais homoafetivos, mas um beijo demorou para ser exibido. A novela de 2011, Amor e revolução exibiu uma cena de beijo entre as personagens de Giselle Tigre e Luciana Vendramini, mas após uma “pesquisa de satisfação com o público”, decidiu não exibir a cena entre dois personagens homens.  O primeiro beijo só aconteceu em 2013, em Amor à vida, entre os personagens de Matheus Solano e Thiago Fragoso.

Por falar em novela, inúmeras foram as músicas de Rita que fizeram parte de trilhas sonoras, campeã de músicas temas de abertura, dentre elas Baila Comigo, Chega mais, Vítima, Dona Doida e Minha Vida. Acredito que muitas as pessoas tem ao menos uma música de Rita que traz boas recordações, que faz parte da trilha sonora da vida.

Sobre etarismo, Rita já falava sobre tabus na década de 90. Falava sobre como era difícil “trocar figurinhas” com outra mulher sobre menopausa, sobre como devemos resgatar a beleza das mulheres. “Agora é hora de ter acesso ao arquivo das feiticeiras e isso você só tem depois dos 40. Não há que ficar procurando plástica, a fonte da juventude não tá aí. O belo da mulher feiticeira, que sabe de tudo… é isso que eu tô procurando”[6]. Quase 30 anos depois desta entrevista, Rita Lee reafirma o fato de estar de bem com quem é, com suas rugas, cabelo branco, com o que viveu e vive[7].

Em todas as entrevistas, em todos os shows, sempre com aquela voz doce, sempre de bom humor, sempre de bem com a vida. Com relação ao público, é um fenômeno: pessoas de todas as idades curtem seu som. Meu filho, Max, tem apenas 4 anos e já canta algumas músicas da Rita. No dia da partida de Rita, contei a ele. Na hora de dormir, ele quis cantar Flagra para ela ouvir. E, como o Max, tenho certeza de que várias crianças e adolescentes ouvem Rita. Ela atravessou gerações. Rita foi muitas: escritora, cantora, atriz, intérprete, mãe, companheira… Santa Rita de Sampa, inspiradora, revolucionária. Nossa feiticeira Rita, que abriu caminhos, será eterna.

Rita Lee (Foto: Reprodução/Instagram)
Rita Lee (Foto: Reprodução/Instagram)

Notas de rodapé

[1] A frase de Allen Saunders, publicada em 1957 na Reader´s Digest, aparece em letras de música como Beautiful Boy, de John Lennon e Right side of wrong, de Bon Jovi.

[2] EDI, M. C. S. Discussão Rita Lee & Policiais em Aracaju no seu ultimo Show – Polêmica. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_-aFH2N4Xf4>. Acesso em: 11 May 2023.

[3] MUSICALIDADE. Rita Lee – Balada Do Louco. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=a3U_EvrxJD0>. Acesso em: 11 May 2023.

[4] TVHEMPADAO. Rita Lee fala sobre LSD e Maconha no Programa do Bial. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XbnG9Cipzf4>. Acesso em: 11 May 2023.

[5] CAUSA, Justa. Justa Causa entrevista o neurocientista americano Carl Hart (mitos sobre drogas). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BNNCXaeUXXE>. Acesso em: 11 May 2023.

[6] LOMBARDI, Bruna. Gente de Expressão – Rita Lee. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SoaeQsBnvms>. Acesso em: 11 May 2023.

[7] SAMORA, Guilherme. “ENVELHECER É UMA LOUCURA, NÃO É PARA MARICAS” – Rita Lee. Envelhecer com Estilo. Disponível em: <https://www.envelhecercomestilo.com/envelhecer-e-uma-loucura-nao-e-para-maricas-rita-lee/>. Acesso em: 11 May 2023.

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