Na semana passada, estreou a nova temporada de “Casamento às cegas – Brasil“. Homens e mulheres participam de diversos encontros sem se verem, com o objetivo de, primeiro, conhecer a essência e provar que as aparências não importam, mas sim quem a pessoa é. Desta fase inicial, chamada de fase das cabines, os casais que se conectam acabam indo para a fase da lua de mel e depois para a fase da convivência. Em pouco tempo, é marcada a cerimônia de casamento.
Diversas atitudes reprováveis que presenciamos rotineiramente também podemos verificar neste reality. Na primeira temporada, por exemplo, um dos participantes dizia que a mulher era a sua versão de saias, no sentido de terem comportamentos idênticos, inclusive de terem tido diversos relacionamentos anteriores. No entanto, quando se tratava dela, a atitude dela era reprovável. Dizia que a mulher era sexo frágil e termina com a pérola: “eu sempre imaginei para mim uma mulher mais tranquilinha, sem tanto passado como eu. Eu não gostaria de me casar com uma mulher que já passou por milhares de homens”. Em um jantar, ela disse que sonhou com uma traição e ele disse não seria traição, seria agregar alguém ao relacionamento. Ela questionou, dizendo que também poderia então agregar. Aí vem outra pérola: “se a mulher for bonita, sim”. Em outras palavras, tudo bem se ela tiver outras experiências dentro do relacionamento, desde que sejam com mulheres e que elas sejam bonitas. Afinal, nas palavras dele, apenas mulheres, já que “nisso” ele era machista: “nenhuma r*la vai entrar no nosso relacionamento”.
Na temporada 3, que já está no ranking de séries mais vistas da semana, um dos participantes inicia uma conversa sobre sexo com uma das mulheres e, logo depois, dizer que não gostou da “ela é um amor de pessoa, mas o jeito dela de falar sobre sexo eu acho muito para frente (…) o sexo tem que ser conversado entre quatro paredes com a minha mulher. Não gostei da forma que ela abordou o sexo. Parando para pensar: pô, é minha mulher… não”.
Infelizmente, ainda é bastante comum vermos comportamentos machistas como estes, que ainda separam as mulheres em “mulher para casar” e “mulher para ficar” e que buscam uma mulher sem voz, “bela, recatada e do lar”. Na década de 1950, havia uma espécie de “guia” para mulheres serem “boas esposas”. Basicamente, elas deveriam servir o homem, esperando-o feliz em casa, maquiada e arrumada, parecendo animada. A mulher boa era a mulher submissa, que, de preferência, pouco ou nada falava. Para se ter uma ideia, uma das “dicas” era “lembre-se: os temas de conversa dele são mais importantes que os seus”. Afinal, a mulher não tinha sequer o direito de questionar o homem, que seria o dono da casa, aquele que provia a família e, portanto, estaria hierarquicamente em posição de superioridade.
No cinema, nos filmes e desenhos, muitas vezes é reforçada a imagem da mulher como aquela que tem como único objetivo de vida a busca por um príncipe encantado, para casar e ter filhos. Afinal, esta seria o verdadeiro retrato da felicidade para ela, algo que outrora foi defendido inclusive por médicos como Willian Action, que afirmava: “a sexualidade feminina é satisfeita com o parto e a vida doméstica”[1].
A Pequena Sereia, desenho infantil de 1989, trazia em uma das músicas — Corações infelizes — a ideia de que homens não gostam de mulheres que falam demais, preferem mulheres “caladinhas”: “Sabe quem é a mais querida? É a garota retraída. Só as bem quietinhas vão casar”. Para que Ariel precisava ter voz se ela tinha uma bela aparência e poderia usar a “linguagem do corpo”, como disse a personagem Úrsula? Percebendo a influência negativa de músicas como esta, no recém-lançado live action, o autor da letra, Alan Menken, fez alguns ajustes na canção, justamente por conter partes que “poderiam fazer as garotas mais jovens sentirem que não devem falar”[2].
Valeska Zanello explica que este silêncio da personagem seria um comportamento atravessado pelo gênero, já que homens e mulheres se calam por razões diferentes[3]. Podemos inclusive, nem perceber quando assistimos a algumas produções, mas é aqui que entra a importância de compreendermos como agem as tecnologias de gênero. O conceito, cunhado por Tereza de Lauretis, é de que “produções culturais que não apenas representam os valores, estereótipos, performances e emocionalidades de gênero, mas os reafirmam e reificam”, funcionando como verdadeiras “pedagogias de gênero”[4].
Chakian traz em seu livro as reflexões de Kate Millet: ao atribuirmos determinadas características à personalidade das mulheres, como o fez Freud, foram desconsiderados, fatores como educação e fatores de socialização que fizeram – e fazem – com que mulheres tenham uma postura mais passiva, por exemplo[5].
Um exemplo de como a sociedade patriarcal tenta controlar os corpos das mulheres pode ser visto na novela Gabriela de 2012. Coronel Justino (interpretado por José Wilker) dizia: “deite que eu vou lhe usar”[6], sempre que queria ter relações sexuais com a mulher, Sinhazinha (interpretada por Maitê Proença). Não interessava se ela não queria, se ela não estava disposta, afinal, estava ali para servi-lo sexualmente. Este seria o papel de uma “verdadeira dama da sociedade”.
Quando então, no mencionado reality, uma mulher se comporta de uma forma considerada incorreta segundo os padrões da sociedade patriarcal (ex: falando abertamente, sem tabus sobre sexo), ela é logo descartada pelo pretendente, que não pode conceber um casamento com uma mulher tão “para frente”, dona de si e do próprio corpo.
São as consideradas mulheres “para frente” que tem, ao longo das décadas, desconstruído o machismo de cada dia. Quando Iza canta Dona de mim, leva uma mensagem muito forte para as mulheres. Afinal, já dizia Rita Lee: “toda mulher é meio Leila Diniz”, uma mulher revolucionária, que desafiou o conservadorismo e a ditadura e quase foi presa por ser considerada uma ameaça à família brasileira. Não devemos aceitar a opressão. Não devemos deixar que nada nos limite ou aprisione. O século é o XXI e ainda seguimos na luta, “mexendo e remexendo na Inquisição”[7].
Notas de rodapé
[1] CHAKIAN, Silvia. A construção dos direitos das mulheres. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed, 2020. p. 27.
[2] Disponível em: https://www.legiaodosherois.com.br/2023/a-pequena-sereia-live-action-mudou-letra-musicas.html Acesso em 15 jun. 2023.
[3] ZANELLO, Valeska. A prateleira do amor. Curitiba: Appris, 2022. p. 46.
[4] Idem, p. 44.
[5] CHAKIAN, op. cit., pp. 33-34.
[6] Cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=evkddgc_g3M. Acesso em 15 jun. 2023.
[7] Trecho de Pagu, de Rita Lee e Zelia Duncan.