Em maio passado, publicou-se, no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), um pequeno artigo[1] de Thiago Rocha de Rezende, jovem pesquisador e doutorando em Direito Penal pela UERJ, que vem propagando textos críticos[2], alvejando principalmente a dogmática jurídico-penal. Com simplicidade e rigor metodológico, o autor dedicou-se, dessa vez, às chamadas “teorias da pena”, ou, mais precisamente, ao embate entre a “teoria negativa” (ou agnóstica), arquitetada por Nilo Batista e Eugenio Raul Zaffaroni, e a sucessão de “teorias positivas” que, há séculos, perseveram em fixar propriedades miraculosas à pena privativa de liberdade. Logo à partida, o autor salienta um problema aparente: operando uma dialética truncada, estaria a teoria negativa apenas espelhando a teoria positiva?
Para responder objetivamente ao problema, há que distanciar-se do matraquear dos aduladores e das divergências meramente adjetivas, recorrendo ao método para perquirir os pressupostos da própria indagação: afinal, é correto falar-se em teoria da pena?
Compartindo da conceituação de Lakatos e Marconi, propõe-se, então, que “a teoria científica é um sistema em que algumas hipóteses válidas estão comprovadas/confirmadas e quase nenhuma está não comprovada/não confirmada”[3]. Só com isto já se poderia concluir que as chamadas teorias positivas da pena – sejam elas absolutas, sejam elas relativas – padecem, há séculos, de indigência empírica: seus defensores não oferecem quaisquer evidências concretas que fundamentem e consubstanciem aquilo que, com resoluta autoconfiança, afirmam e reafirmam.
Tratando-se o tema com a seriedade epistemológica que ele recomenda, as supostas teorias positivas da pena se veriam reduzidas, na melhor das hipóteses, a… hipóteses! E o artifício de ajuntá-las em um novo conjunto não bastaria para que superassem sua condição de simulacro teórico: o caldo hipotético roxiniano investiu, de fato, na receita formal, porém descuidou-se de temperá-lo com dados substanciais. Inclusive, é bom pontuar que, talvez, o autor esteja sendo demasiado generoso com seus adversários: se a formulação de uma hipótese é um requisito objetivo de uma pesquisa regrada, ela nos diz algo da subjetividade do pesquisador, de seus interesses mais ou menos sinceros de pesquisa – e, com toda a franqueza, parece que os excelsos juristas não vêm dando mostras de esforço para corroborar empiricamente aquilo que se nos aparece como uma hipótese.
Não obstante, acompanhemo-lo em sua benevolência. E quanto à “teoria negativa da pena”? Seria ela uma “hipótese negativa” (se comparada às hipóteses positivas)? O autor nos esclarece que não, pois o que Batista e Zaffaroni fazem é “uma crítica às hipóteses positivas acerca do funcionamento da pena”[4]. Nesse sentido, o mais apropriado seria designar a proposta dos dois pensadores latino-americanos como uma “crítica negativa da pena”[5]. Seu raciocínio é engenhoso, e nos remete à velha querela frankfurtiana entre teoria tradicional e teoria crítica – querela essa que, diga-se de passagem, é antípoda do método marxiano, em que a crítica é o pressuposto da teorização. Aos que discordam, estejam prontos a concluir que uma crítica literária é sinônimo de teoria (crítica) da literatura.
Entrementes, uma concessão é feita: o autor nos lembra que aquilo a que chamamos teoria, no mundo jurídico, é diferente das conceituações esposadas em filosofia da ciência. Em sede jurídico-dogmática, uma teoria compreenderia um agregado de pensamentos sistematizados, produzidos na literatura jurídica[6]. Se se aderir a essa concepção metateórica – coisa que o autor não aconselha – não haveria prejuízo em chamar a crítica negativa da pena de teoria. Para além dessa concessão, de notável sutileza, o que se observa, nas entrelinhas, é o seguinte: bem poderíamos usar o termo teoria, desde que reconhecêssemos que ele só se aplica aos nossos manuais de direito, e não aos tratados de filosofia da ciência.
Historicamente, este tipo de expediente é característico da nossa tradição bacharelesca, que absorve modelos abstratos, transpira diletantismo e sobrevive à base de sua própria endogenia. Não é casual que, ainda hoje, muitos dos filiados ao germanismo doutrinário sigam papagueando, aqui e acolá, que o direito é, sim, uma ciência, mas não aquela a que se referem os epistemólogos, e sim uma “ciência normativa”. Armado o circo de ideias obtusas, o malabarismo retórico torna-se imperativo profissional.
Se é certo que o direito não é uma ciência, nada impede que possa tornar-se científico. Para tanto, será necessário assumirmos uma postura mais humilde e parcimoniosa, como a adotada por Thiago Rocha de Rezende, rompendo com o caráter estritamente autorreferencial da nossa dogmática, que, quando desperta para novos ares, o faz para usurpar, de modo desajeitado, teorias produzidas em outros campos.
Naquilo que concerne à capacidade explicativa de nossos maiores intelectuais, ainda estamos em uma etapa preliminar, aferrada a explicações estritamente funcionalistas (funções declaradas versus funções reais), que, malgrado legítimas, estão muito aquém do que se espera de uma explicação aprofundada, necessariamente mecanísmica.
Meus cumprimentos ao amigo, por introduzir um pomo de discórdia no debate jurídico-penal brasileiro. De fato, o que se acha consolidado é uma bela crítica negativa à retórica punitiva em curso – não uma teoria científica.