Num ensaio luminoso, Teoria dell’arte d’avanguardia (Società editrice il Mulino, 1962), Renato Poggioli (1907-1963) meditou brevemente, porém com destreza, sobre a questão da popularidade, historicizando-a. Em análise retrospectiva e desprovida de qualquer saudosismo, constatou que os artistas de ontem, tal como os de hoje, sempre almejaram reconhecimento por seus méritos estéticos; porém, à diferença do que passaria a vigorar na modernidade, tencionava-se sobretudo a aprovação das elites, e não o aplauso da plebe[1]. Entretanto, à medida que se foi disseminando o acesso à educação formal, à informação e ao consumo de bens culturais, ocorreu uma importante transformação…
A modernidade inaugurou uma tendência inteiramente nova, que Poggioli etiquetou de popularidade imediata[2]. Empenhadas em arrebanhar um contingente cada vez maior de consumidores, as agências comerciais alvejaram as massas populacionais, investindo somas exorbitantes na produção de bens de consumo artísticos e culturais, que, a despeito de sua qualidade duvidosa, caíam imediatamente nas graças do povo. Na opinião do ilustre professor de literatura comparada, o fenômeno revelaria um paradoxo[3]: “esse tipo de popularidade frequentemente caminha de mãos dadas com o desconhecimento do nome do autor e com o esquecimento do título [da obra]”. Dito de outra maneira, vivemos na era dos best-sellers, dos hits e dos blockbusters – de sucessos que, se um dia foram assimilados, não sobreviverão até o próximo carnaval…
Bem mais intrigante, contudo, é o conceito poggioliano de popularidade mediata, que abrange processos nos quais o prestígio granjeado por autores e obras é decorrente de assimilação indireta e parcial[4]. Em síntese: qualquer pessoa minimamente letrada sabe que Machado de Assis (1839-1908) é o autor de Dom Casmurro (1899), que William Shakespeare (1564-1616) é o gênio por trás de Hamlet (1599-1601), além de poder aludir a aventuras quixotescas, jornadas dantescas e ambições fáusticas. O inconveniente é que, via de regra, todas essas referências culturais decorrem não do enfrentamento direto de autores e obras, e sim de uma absorção mediada por terceiros.
Até aqui, nenhuma novidade histórica, pois já passou a hora de superarmos a crença infundada de que, em eras pretéritas, nossos antepassados longínquos despertavam recitando a Ilíada e adormeciam folheando a Odisseia. Na realidade, a transmissão e difusão de cultura sempre esteve primordialmente baseada na oralidade, e não na leitura. Todavia, se a popularidade sempre esteve mediada por terceiros, o intenso desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos fez com que aqueles processos de transmissão e difusão tomassem proporções inéditas, tornando-se cada vez mais dinâmicos[5] e diversificados. (E note-se que Poggioli faleceu bem antes do advento da internet, dos smartphones e do ChatGPT ).
Achamo-nos, portanto, em face de um novo paradoxo, pois tanto mais se ampliam as possibilidades de acesso ao conhecimento, mais parecemos nos distanciar de sua concreta aquisição. Cotidianamente bombardeados de informações – a maior parte das quais, sequer as solicitamos –, acabamos nos perdendo em filigranas inúteis e trivialidades comezinhas. Consequentemente, não admira que o excesso de informações acabe por traduzir-se em défice de conhecimentos, uma vez que não pode haver conhecimento onde não houver uma paciente ruminação de temas, conceitos e ideias.
Veja-se, a título de exemplo, o triste desfecho histórico do Frankenstein (1818) de Mary Shelley (1797-1851). Clássico de seu gênero, a obra inspirou (e continua inspirando) sucessivas gerações de artistas e críticos literários. Mesmo assim, passados mais de duzentos anos desde a publicação original, com inúmeras adaptações para os mais variados veículos, ainda nos deparamos, invariavelmente, com a espantosa confusão de uma maioria incauta, que teima em chamar o Monstro de Frankenstein, confundindo criatura com criador.
Do exame dos conceitos de popularidade imediata e mediata, afloram nítidas influências sociológicas e de psicologia social, mas resta evidente que foram exclusivamente pensados para dar conta de objetos de arte, ou, mas precisamente, das formas de popularização de obras de arte, até meados do século XX. De olho na realidade, as denúncias do crítico ítalo-americano parecem ter se alastrado por todos os domínios da vida cultural, razão pela qual valeria a pena tentar ampliar seu raio de ação; verificar se são úteis para tratar de outros fenômenos. E se examinássemos algumas das assimilações que, entre nós, popularizaram alguns pensamentos criminológicos? Estariam as leituras em dia?