O contexto histórico e as influências do Iluminismo italiano na reforma penal

Beccaria (1738-1794) foi um pensador insólito – não tanto pelo que fez em sua obra, mas pelo que fizeram dela. Contava apenas 26 anos de idade quando da publicação de Dos Delitos e Das Penas (1764), ensaio imediatamente ovacionado pelos maiores representantes do Iluminismo e que acabaria por consolidar-se, em matéria de reforma penal, como texto mais lido do mundo ocidental[1].

Sem dúvida, há pensadores que marcam época; mas também há outros que, em razão do extraordinário grau de influência que exerceram, condensam-na. Este último caso parece aplicar-se a Beccaria, autor de uma prosa tão cintilante, que ofuscou toda a riquíssima tradição iluminista italiana – especialmente a napolitana e a milanesa. E, como se sabe, o excesso de luminosidade pode ser tão turvador da visão quanto o é a absoluta escuridão.

Há que recuperar o contexto histórico que deu azo à obra, seus antecedentes intelectuais. Nesse sentido, as linhas que seguem tem um objetivo singelo: apontar alguns nomes, algumas ideias e algo do contexto da época.

Em finais do século XVII, em pleno curso da Revolução Científica, a obra newtoniana afirmava-se enquanto imperativo dos novos tempos. A Itália, que, àquela época, era pouco mais que um conjunto desarranjado de cidades e principados – a maior parte dos quais pertencia à Áustria dos Habsburgo ou ao papado – tinha a sua vida cultural e intelectual totalmente determinada, desde o século anterior, pelos ditames jesuíticos e inquisitoriais[2].

O ponto de arranque da Ilustração italiana deu-se em Roma, quando, em 1707, Celestino Galiani (1681-1753) e seu grupelho de associados principiaram a fazer experimentos com a ótica newtoniana. Curiosa era a proveniência de Galiani – um monge, feito bispo aos 1731 –, que logo se avultaria como a principal liderança da vida educacional napolitana[3]. Não tardou muito até que as novas ideias fincassem sólidas raízes e passassem a ser amplamente discutidas, apesar de ainda alheias ao meio universitário[4]: “(…) nos 1720, a nova cultura ilustrada com suas fontes europeias tinha chegado aos círculos intelectuais italianos, a despeito dos esforços da Inquisição para suprimi-la”.

A Igreja, carente de respostas para os novas problemas que emergiam, investiu, como era  seu costume histórico, na punição. Exemplo dos mais sugestivos foi o de Pietro Giannone[5] (1676-1748), que, em virtude da publicação de sua História Civil do Reino de Nápoles (1723), passou a ser perseguido. Ciente de que corria grave perigo, o jurista e historiador deixou Nápoles, mas acabou sendo sequestrado, aos 13 de setembro de 1735, por emissários do Santo Ofício. Apesar de ter conseguido fugir, uma vez mais, graças à benevolência e amizade de Ludovico Muratori (1672-1750), tornou a ser apanhado em 24 de março de 1736, ocasião em que foi preso. Passou o resto de seus dias no cárcere, onde faleceu, doze anos depois, aos 17 de março de 1748. Sua obra foi um testemunho de tolerância e laicidade; sua morte foi mais uma prova da brutal intolerância dogmática da nobreza e do clero.

Em plena gestação daquilo que viríamos a chamar capitalismo, comércio e indústria, circulação e produção, apareciam como os veículos primordiais para o progresso humano – progresso que se traduzia, na opinião de seus apologistas, em generalização da felicidade. Muratori, o benevolente padre católico, aberto às ideias liberais e ao espírito reformista[6], estava entre esses defensores da sociedade comercial. No seu Da Felicidade Pública, Objeto de Bons Princípios (1749), procurou sugerir um conjunto de reformas que atuariam em benefício da felicidade pública[7], onde a educação moral era afirmada como pressuposto necessário à ação política[8]. Um dos maiores perigos à ordem e, consequentemente, à universalização da felicidade, era o banditismo social – tema amplamente denunciado na literatura do século XVIII[9].

O problema do banditismo era tão preocupante, que todas as mentes mais avançadas da época se sentiram obrigadas a dar algum pitaco sobre o tema. Antonio Genovesi (1713-1769), discípulo de Galiani e lente da recém-fundada cátedra de economia política da Universidade de Nápoles, escreveu páginas e mais páginas sobre malfeitores urbanos, que apareciam como a antítese social do comércio. Genovesi era amigo de Beccaria e Pietro Verri (1728-1797), e lançava as suas Lezioni di Commercio ao mesmo tempo que os membros da Academia dos Punhos popularizavam seu Il Caffé[10]. Em ambos os periódicos, temas político-econômicos afloravam como a principal preocupação da época.

Este o caminho que deve orientar a leitura de Beccaria e demais interlocutores: as preocupações jurídicas não estão na raiz da sua problemática, senão como consequências óbvias de seus estudos em economia política. Como o leitor haverá de notar, é evidente que, para Beccaria, seria impossível erigir uma sociedade comercialmente ativa e desenvolvida, em que se pudesse garantir a “maior felicidade ao maior número de pessoas”, onde as transações econômicas se achassem acossadas pelo banditismo social. Se a ordem transmudava, aos soluções do passado não mais se adequavam ao desafio histórico que se impunha: era necessário um novo Direito, fundado em princípios racionais, que orientassem a política criminal. É isto, de resto, o que se lê em Dos Delitos e Das Penas.

Notas de rodapé

[1] FRIEDLAND, Paul. Seeing justice being done: the age of spectacular capital punishment in France. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 195.

[2] JACOB, Margaret C. The secular enlightenment. Princeton: Princeton University Press, 2019, p. 204.

[3] Ibid., pp. 206-207.

[4] Ibid., p. 207.

[5] Cf. GIANNONE, Pietro. IN: https://www.treccani.it/enciclopedia/pietro-giannone_%28altro%29/

[6] “Os grandes estudiosos idosos, Muratori e Maffei, voltam cada vez mais sua atenção para o problema da sociedade. Eles discutem usura, o ritmo de trabalho e o bem-estar público.” IN: VENTURI, Franco. Utopia and reform in the enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1971, p. 119.

[7] A posição de Muratori é de um paternalismo inequívoco e desinibido; num giro antimaquiaveliano, confia a tarefa de garantir a felicidade pública ao próprio príncipe. Cf.: FERRONE, Vincenzo. The politics of enlightenment: constitutionalism, republicanismo, and the rights of man in Gaetano Filangieri. London: Anthem Press, 2012, pp. 81; 209.

[8] JACOB, op. cit., p. 211.

[9] Cf., REINERT, Sophus A. The Academy of fisticuffs: political economy and commercial society in enlightenment Italy. Cambridge: Harvard University Press, 2018, p. 232.

[10] FERRONE, Vincenzo. The enlightenment: history of an idea. Princeton: Princeton University Press, 2015, p. 128

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