Alguns anos atrás, quando o doutorado não era mais do que um projeto, tive a oportunidade de dividir com o Professor Sebastian Scheerer, da Universidade de Hamburgo, algumas inquietações sobre política criminal. Saí da conversa com a certeza de que queria escrever sobre essas inquietações no doutorado, mas uma afirmação do Professor não me saiu da cabeça. Com o sotaque teuto-baiano inimitável, ele me disse: “June, até hoje não vi ninguém que fosse capaz de descrever a política criminal no Brasil”. Hoje, com a gestação da tese já avançada, me pergunto se essa tarefa é mesmo possível.
Afinal, o que é política criminal?
Aos que se interessam pelas regressões históricas, diz-se que a política criminal nasce com Beccaria e Feuerbach – na importância desses dois pensadores, toda divergência torna-se acessória na medida em que representavam mais ou menos uma mesma conjuntura histórica, marcada pela ascensão da burguesia e pelas transformações nos métodos de exercício do poder punitivo[1]. Ou seja: no limite do conceito de política criminal, ela não diz respeito tanto ao poder punitivo – que evidentemente já existia antes da modernidade –, mas muito mais à forma como ele é exercido pelo Estado frente ao cidadão. Isso significa que, dentre todas as características da política criminal moderna, talvez a mais importante seja aquela percebida por von Liszt: o direito penal é a barreira instransponível da política criminal[2].
A política criminal, portanto, é como o Estado se encarrega de formular o programa oficial de controle social; como organiza os procedimentos repressivos em face do crime, como institui um sistema de normas que define delitos e penas, como estabelece os princípios gerais de aplicação da norma[3]. Essa é uma política criminal da razão penal, ainda estritamente vinculada ao direito penal, mas sempre legitimadora da pena e que sempre aposta nos benefícios de uma hipotética eficiência punitiva[4].
Mas definir o conceito de política criminal a partir do direito penal impede que se perceba aquilo que Heleno Fragoso, de maneira pioneira, já nos dizia: a política criminal é um aspecto da política geral, é política social antes de mais nada[5]. Essa é a proposta da criminologia crítica para compreender a política criminal: o objetivo não deve ser o bom funcionamento do sistema penal ou das prisões, mas a redução do impacto do poder punitivo. Aqui, a distinção estabelecida por Baratta entre política penal e política criminal faz todo sentido: a política penal do Estado, representada principalmente pelos processos de criminalização e pela repressão policial, tem fins meramente punitivos; a política criminal, por outro lado deve ser mais ampla que isso, como um conjunto de políticas públicas de natureza diversa, capazes de garantir um sentido mais humanizado para as questões criminais[6].
Além disso, essa perspectiva também nos mostra que o direito penal não é capaz de ser, de fato, aquela barreira intransponível da política criminal. Ele se coloca como um instrumento político, uma ferramenta escolhida deliberadamente e que serve muito mais à função ideológica de mascarar o óbvio: o Estado é incapaz de resolver os problemas estruturais da sociedade, especialmente por meio do poder punitivo[7]. Portanto, a partir da criminologia crítica, a política criminal não deve ser entendida como outra coisa senão como um direcionamento político do Estado para a contenção do poder punitivo.
E a política criminal brasileira?
Considerando a história brasileira recente, há três marcos legislativos que instituem algo que se pode considerar como um “programa” de política criminal no Brasil contemporâneo, como uma reação democrática à ditadura, em que o poder punitivo era exercido também à margem da legalidade por um sistema penal subterrâneo[8]. Em 1979, a Lei da Anistia, por controversa que seja, dá os primeiros sinais de uma rejeição ao autoritarismo penal. Nos anos seguintes, os debates legislativos que culminam em 1984 com a reforma da Parte Geral do Código Penal e com a Lei de Execução Penal parecem indicar um passo na direção da reforma de todo o sistema jurídico penal segundo parâmetros democráticos e que sinaliza para um direito penal liberal.
Em contrapartida, esse entusiasmo político-criminal que marca o processo de redemocratização brasileiro começa tomar caminhos confusos a partir da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Apesar do esforço em construir uma nova ordem social e jurídica, a política criminal parece ser deixada de lado, a não ser por alguns poucos debates em torno de temas específicos: pena de morte, prisão perpétua, tortura, redução da maioridade penal, aborto e drogas. É particularmente notável que o processo constituinte tenha sido levado à cabo sem uma subcomissão responsável pelo desenho da política criminal brasileira – se não por uma preocupação democrática com o poder punitivo, então pelo menos enquanto preocupação técnica, para recepcionar as reformas penais da década pelo novo texto constitucional.
O resultado é uma incerteza político-criminal: embora a Constituição consolide alguns princípios norteadores do direito pena (legalidade, presunção de inocência, etc.), a ampliação do poder punitivo é garantida em nome da soberania popular através dos mandados constitucionais de criminalização e pela criação da figura do crime hediondo. As disposições político-criminais conflitantes da Constituição da República representam um retorno à centralidade da pena privativa de liberdade e uma valorização do direito penal simbólico.
E agora?
Tenho a impressão de que é nessa contradição que se origina o problema político-criminal do Brasil contemporâneo: não existindo critérios sistematizados, lógicos e com um direcionamento político claro para a política criminal, é apenas natural que o poder punitivo se fortaleça. Não me surpreende, por isso, que a cada evento social ou político o ímpeto penalizador da sociedade, do legislativo e do judiciário seja reforçado: a cada novo escândalo, a cada nova tragédia, a cada comoção social, um novo grau de poder punitivo é inaugurado, numa política criminal (ou puramente penal) de emergência.
Neste sentido, talvez não exista, de fato, um programa de política criminal no Brasil, no sentido real da expressão – exceto, é claro, por um projeto de política punitiva e de extermínio, suprimido dos discursos oficiais, mas presente na realidade social brasileira[9].
Notas de rodapé
[1] BATISTA, Nilo. Capítulos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2022, p. 14.
[2] ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1.
[3] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 10ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 421.
[4] BATISTA, Nilo. Capítulos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2022, p. 15-17.
[5] FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987, p. 17.
[6] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
[7] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris / ICPC, 2010.
[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, volume I: teoria geral do direito penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 69.
[9] BATISTA, Nilo. Capítulos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2022, p. 193.