No dia 8 de novembro de 2019, a cidade de Curitiba – ou seria melhor dizer república? – foi palco de um momento histórico: após 580 dias de prisão na sede da Polícia Federal, o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi, finalmente, solto[1].
Em meio à celebração de alguns e à indignação de outros, não era de espantar que as condições desse novo entendimento judicial seriam objeto de constante escrutínio: das portarias às coberturas, quando aconteceu a hashtag #LulaLivre, todos desandaram a debater sobre a inocência do então ex-presidente.
Embora a qualidade dessas discussões fosse frequentemente questionável – quando não completamente dissociada da realidade –, havia algo que me incomodava em todas elas: a dificuldade de esclarecer as premissas de cada debate. Mais especificamente, chamava-me a atenção a dificuldade que todos tinham em compreender o que significava essa inocência de que tanto falavam.
Nos corredores do sistema de justiça criminal brasileiro, a expressão “presunção de inocência” ainda detém um peso considerável. Dificilmente encontramos um jurista contrário a tal ideia – ao menos explicitamente[2]. Sua função é impor ao Estado o ônus da prova, atribuindo-lhe condições para o exercício de sua pretensão punitiva em termos da responsabilidade pela superação da dúvida razoável. É dizer: se o Estado quiser agir contra um indivíduo, ele terá de provar sua legitimidade para fazê-lo.
Embora denominemos a presunção de inocência como um princípio – ou seja, como um dispositivo estruturante dos outros componentes do sistema legal –, tal qualificação não modifica sua forma essencial: trata-se de uma imposição normativa (i.e. regra) responsável por orientar a utilização tecnológica do direito. Mas o que isso significa, em termos práticos?
Imagine que você tem em mãos o manual de instruções de uma complexa máquina. Para garantir o funcionamento adequado dessa máquina – ou seja, para que ela cumpra com a função que dela se espera – é preciso seguir as orientações desse manual. Embora cada engrenagem desse aparato conte com suas particularidades, existem algumas diretrizes gerais condicionando seu funcionamento[3]: se você não cumprir com o disposto na parte geral (e.g., ligar a máquina em uma corrente elétrica adequada), não deve se espantar se a função específica não puder ser cumprida (e.g., acessar seus emails), não é verdade?
O direito, enquanto uma tecnologia social, funciona da mesma maneira. Sua operação é determinada, para além das engrenagens específicas (i.e. seus componentes), por condições gerais de funcionamento – por determinações que estruturam a relação entre os diversos componentes, estabelecendo seus poderes causais específicos. E a presunção de inocência é precisamente um desses princípios, permitindo que a operação dos diversos componentes seja realizada a partir do seu filtro enquanto premissa: toda e qualquer regra do sistema deve ser interpretada conforme a disposição de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII)[4].
Se a ideia de “presunção de inocência” assume essa conotação jurídica, isso não significa que esse seja o único significado atribuído ao seu elemento principal: a ideia de “inocência”, em si. Quando entendida como um princípio legal, trata-se de uma concepção de inocência preocupada com uma aplicação específica: a aplicação de uma tecnologia de controle social de acordo com parâmetros específicos. A presunção de inocência é uma diretriz sobre como o direito deve operar se quiser punir uma pessoa por uma ação potencialmente
“criminosa” – um direito político, compartilhado por todos os cidadãos de um país[5]. No entanto, além dos corredores dos tribunais, a expressão “inocência” representa muito mais do que essa interpretação limitada.
Consideremos, por exemplo, a seguinte pergunta: quando nos deparamos com a expressão “inocência” para além do universo do direito, qual é a imagem que nos vem à cabeça? Uma criança, em sua pureza imaculada; talvez um pequeno animal, intocado pelas experiências da vida. Não pensamos em estruturas jurídicas, mas na ausência de culpa. Pensamos na pureza, na ausência de malícia[6]. Pensamos, em suma, naquilo que podemos chamar de uma noção essencialista de inocência.
Ao chamar essa visão de essencialista, estou me referindo a uma característica que acreditamos ser inerente ao indivíduo, uma qualidade intrínseca do ser que prescinde de uma consideração de seus atos[7]. Aqui, o termo se refere a uma espécie de estado de graça, uma inocência idílica, que nos remete a uma imagem de verdadeira ignorância (“Perdoa-os, Pai, pois eles não sabem o que fazem”).
Essa concepção de inocência, ao contrário da sua configuração enquanto presunção jurídica, reside não na relação entre o indivíduo e o sistema de justiça, mas na própria condição moral da pessoa. Uma pureza inata, um estado de ser que denota a ausência de culpa; algo mais que um fato, um traço de caráter, um atributo fundamental do ser humano.
E aqui está, na minha concepção, o maior problema de comunicação entre aqueles que defendem e aqueles que se enfurecem com a ideia de Lula ser “inocente”: enquanto um lado fazia referência a uma condição jurídica, o outro não concebia como possível atribuir uma avaliação moral de “pureza” ao ex-presidente.
Quando nos referimos à “inocência” como uma qualidade jurídica, estamos tratando de alguém cuja culpa (também jurídica) não foi comprovada devido à ausência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Somente dessa maneira um indivíduo deixa de ser, legalmente, “inocente”. O foco do direito penal não reside no caráter intrínseco do indivíduo, mas sim em suas ações e nos efeitos dessas no mundo externo, principalmente em relação aos direitos de terceiros. Uma pessoa é julgada com base em suas ações, pois são elas que têm potencial para infringir os direitos de outrem e perturbar a ordem social. Portanto, o direito penal contemporâneo tem como objetivo punir atos potencialmente prejudiciais (direito penal do fato), não as características intrínsecas de uma pessoa (direito penal do autor)[8].
Ao analisarmos a noção de “inocência”, portanto, não podemos considerá-la de maneira isolada ou atomística. Estamos discutindo uma visão de inocência que não é totalizante, mas que é, por assim dizer, transacional e específica a um determinado contexto – a uma ação específica. Ao mencionarmos a presunção de inocência, então, não estamos fazendo suposições sobre o caráter moral de alguém ou sobre a ausência de culpa em sua vida. Estamos falando de uma orientação fundamental que assegura a pessoa ser tratada como inocente em relação à prática de uma ação específica, até que, após o devido processo legal, sua culpa seja estabelecida além de qualquer dúvida razoável.
Entendendo essa discrepância, notamos um descompasso fundamental entre diferentes significados atribuídos ao mesmo significante “inocência”. Por um lado, estamos vinculados a uma concepção normativa de inocência, tal como utilizada pelos sistemas jurídicos em geral; e, por outro, associamos inocência a uma qualidade “ontológica”, como sendo destituída de culpa independentemente da cognição que se tem sobre ela.
Ao defender, corretamente, a inocência de Lula, não estamos fazendo um julgamento moral sobre sua totalidade enquanto ser humano, mas sim falando de uma condição legal: sem sentença penal condenatória transitada em julgado, não há culpa – e, portanto, identificamos um estado jurídico de “inocência”. Ninguém ousaria sugerir que Lula é inocente no sentido essencialista; isso, afinal de contas, implicaria em reduzi-lo a um sujeito necessariamente ignorante sobre a qualidade moral de suas ações – uma imputação de difícil sustentação acerca de um indivíduo eleito três vezes como presidente de um dos maiores países do mundo.
Se a superação da polarização é importante – e eu acredito que seja – devemos nos esforçar para construir pontes entre os diferentes significados atribuíveis aos significantes que utilizamos. Precisamos encorajar um diálogo mais matizado e complexo, reconhecendo que nossa linguagem está saturada de ambiguidade e de possibilidade de múltiplas interpretações. Esta, acredito, é a única maneira de conduzirmos discussões a partir de argumentos racionais, permitindo assim que tentemos solucionar nossas divergências – condição necessária, porém insuficiente, é claro.
Notas de rodapé
[1] FELÍCIO, César. Prisão de Lula completa cinco anos. Valor Econômico, 2023. Disponível em: <https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/04/07/prisao-de-lula-completa-cinco-anos.ghtml>. Acesso em: 18 jul. 2023.
[2] KITAI, Rinat. Presuming Innocence. Oklahoma Law Review, v. 55, n. 2, p. 257–296, 2002. Disponível em: <https://heinonline.org/HOL/P?h=hein.journals/oklrv55&i=284.>. Acesso em: 17 jul. 2023.
[3] LAWSON, Clive. An Ontology of Technology: Artefacts, Relations and Functions. Techné: Research in Philosophy and Technology, v. 12, n. 1, p. 48–64, 2008. Disponível em: <http://www.pdcnet.org/oom/service?url_ver=Z39.88-2004&rft_val_fmt=&rft.imuse_id=techne_2008_0012_0001_0048_0064&svc_id=info:www.pdcnet.org/collection>. Acesso em: 1 out. 2022.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, 2023.
[5] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2020. Ebook (s.p.).
[6] WOLGAST, Elizabeth. Innocence. Philosophy, v. 68, n. 265, p. 297–307, 1993. Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/product/identifier/S0031819100041231/type/journal_article>. Acesso em: 17 jul. 2023.
[7] Uma analogia inspirada pela contribuição de Lawson acerca dos problemas de comunicação na economia contemporânea, embora ele utilize a expressão “ôntico” para fazer referência ao fenômeno de interesse. Cf. LAWSON, Tony. Tensions in modern economics: the case of equilibrium analysis. In: Essays on the Nature and State of Modern Economics. 1. ed. London: Routledge, 2015, p. 169–187.
[8] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 91-97.