Vendetta, vingança e veredito

Execuções sumárias na política de segurança pública

Quando pequeno, deparei-me com um exemplar de “Os irmãos corsos” de Alexandre Dumas pai. Sem nada saber sobre a obra, o autor ou seu contexto, travei meu primeiro contato com a história do ciclo vicioso da vingança, a vendetta, termo com o qual me depararia posteriormente em diversos filmes sobre a máfia. A questão central da curta novela é bastante simples, a ponto de uma criança conseguir captá-la sem dificuldades: vingança, violência e honra são elementos constitutivos da desgraça; quem hoje se vinga, amanhã será objeto da vingança.

Anos depois, ao iniciar meus estudos em Direito, deparei-me com a onipresente afirmação de que o Direito Penal se presta ao confisco público do conflito privado[1]. Essa ideia também simples é baseada na mesma percepção que transpassa a novela de Dumas. A única forma de assegurar que se encerre a vontade vingativa da vítima é lhe retirar a possibilidade de punir o agressor. A pena se torna uma relação entre ofensor e o estado, realocando a vítima à posição de testemunha, não protagonista.

Essa constatação, que decorre antes do desenvolvimento histórico da distinção entre direito público e privado[2], do que de um postulado axiológico, não costuma ser contestada. A disputa se concentra em quais seriam as funções, não as características do direito penal. Há, portanto, certa pacificação epistêmica na compreensão de que o direito penal monopoliza o uso legítimo da violência e, com isso, atua para impedir que os particulares assumam a posição de agentes encarregados de sua própria proteção – dentre as inúmeras razões para tanto, destaca-se a barbárie que impera quando a violência se torna direito subjetivo dos indivíduos. É essa a tônica da célebre construção de Beccaria, comumente utilizada para demarcar o princípio do iluminismo jurídico penal[3]:

“Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança”.

Cesare Beccaria, em “Dos delitos e das penas”

Havendo esta rara concordância na necessidade de impedir o uso privado da violência e subordinar seu emprego pelo Estado a normas rígidas e bem definidas, surge nossa questão. É isso que acontece com a nossa peculiar prática punitiva?

Violência

Seria paradoxal, se não fosse normalizada, a existência e admissão de execuções sumárias em um país no qual a pena de morte, para civis, foi abolida. O que vemos, porém, é seu amplo e desenfreado emprego por órgãos de persecução – executadas por agências policiais e legitimada pelas instâncias judiciárias.

Nas últimas semanas, três chacinas consecutivas rechearam os noticiários de manchetes chocantes. A Polícia Militar da Bahia matou 30 pessoas. Operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro resultaram em 10 mortes, culminando na execução de um menino de 13 anos, acompanhada da tentativa de forjar uma justificação inserindo armas e bombas ao lado do cadáver – que foi registrada em vídeo por pessoas que estavam no local. Em Cortiguaçu, Goiás, um policial militar executou uma pessoa durante uma abordagem sem caráter criminal por uma reclamação de som alto. E no Guarujá, litoral paulista, houve uma operação denominada “Escudo”, orquestrada por vingança à morte de um agente policial, que resultou em 16 mortes, além de denúncias de tortura e ameaças a moradores, ilustrando uma política oficial de terror que nada se diferencia da vendetta corsa.

Estes foram os últimos dias de um país que proclama viver em um Estado Democrático de Direito.

Não há novidade nesse cenário aterrador. A violência policial é característica fundante dos órgãos de persecução. O fenômeno foi amplamente estudado e suas evidências são incontestáveis. Para ilustrar, são significativos os estudos de Mercedes S. Hinton, pesquisadora da London School of Economics e autora de um famoso comparativo entre as agências policiais do Brasil e da Argentina, no qual supunha identificar grandes similaridades em razão do recente passado ditatorial de ambos os países. Descobriu, porém, mais diferenças do que imaginava, atestando o excesso de brutalidade do policiamento brasileiro e seu impacto reduzido na redução de índices de criminalidade, fomentado pela ausência de controles externos efetivos da atividade repressiva e desinteresse em reformas institucionais. O estudo acaba por se converter em uma incursão no fenômeno de formação de bancadas legislativas compostas de membros de órgãos de persecução, os quais ativamente atuam para coibir qualquer discussão séria sobre o problema da violência policial. Deparando-se com a resistência em lidar com o problema, conclui: “Quanto ao papel da polícia, não houve grandes mudanças desde que o Presidente Washington Luis (1926-1930) entoou sua famosa afirmação de que ‘a questão social é um caso de polícia’[4].

Em uma incursão mais profunda na atuação policial, centrada no Estado de São Paulo, Jéssica da Mata demonstra as entranhas de um sistema repressivo seletivo e avesso à responsabilização, tanto institucional quanto de seus integrantes. Ainda, indica a baixa eficiência deste modelo na gestão da criminalidade e converge na conclusão de que há um pacto político impeditivo de qualquer mudança[5].

A atualização desta política de segurança que emprega a morte como instrumento de coação talvez esteja na reação à sua divulgação. Em resposta à divulgação do inadmissível número de execuções – frise-se, sempre, absolutamente ilegais – procede-se à morte, também, da memória daqueles que foram executados. Divulgam-se montagens de crianças atingidas por disparos policiais portando armas, emprega-se o significante “bandido” como se fosse uma autorização para que agentes policiais decidam quem vive e quem morre, antecedentes criminais obtidos após as operações são divulgados para justificar o injustificável. Não há espaço para o luto quando a morte é legitimada pelo Estado.

Veredito

Neste cenário, não surpreende que o atual governador do Estado de São Paulo, em declarações prestadas no dia 2 de agosto de 2023, ao ser confrontado com as evidências de que sua política de segurança é uma variação de extermínio, tenha se irritado e clamado por “responsabilidade” à imprensa. Responsabilidade, em sua concepção, significa adesão ao pacto de acobertamento da violência e ineficiência da repressão policial. Deixa claro que não há espaço para críticas ou esperança de mudanças.

Nos trinta e cinco anos após a redemocratização, acompanhada da promessa e proclamação de vigência de um Estado Democrático de Direito, ainda há pouco a se comemorar. Não existe império da lei em um país no qual um dos braços de atuação estatal não se submete aos limites que lhe foram impostos. O que se vê é a continuidade e reprodução de um sistema penal subterrâneo, conforme nos apresentam Nilo Batista e Eugenio Raúl Zaffaroni, em que se institucionaliza o arbítrio e a violência, aqui ilustrados pelo amplo emprego da extinta pena de morte por via das execuções sumárias[6].

Pior, talvez, seja a constatação de que a política de segurança pública que permeia os diferentes entes federativos confunde vingança com policiamento, terror com prevenção e contagem de corpos com eficiência. A desastrosa vendetta corsa se apequena diante do desastre institucionalizado que é o emprego da violência na política penal brasileira.

Notas de rodapé

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral vol. 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 33.

[2] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 53-57.

[3] BECCARIA, Cesare Bonnesana Marquês de. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 26.

[4]HINTON, Mercedes S. The State on the Streets: police and politics in Argentina and Brazil. Londres: Boulder, 2006, p. 159. Tradução livre.

[5] MATA, Jéssica da. A Política do Enquadro. São Paulo: Brasil, 2021.

[6] BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 70.

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