Afugentando as imposturas reducionistas que, oscilantes entre o sociologismo e o psicologismo, pretenderam colonizar a análise supostamente científica do fenômeno literário, Antonio Candido (1918-2017) preferiu a via do materialismo histórico-dialético – sem, com isso, condescender com o dogmatismo asfixiante do marxismo sectário.
A bem da verdade, a rivalidade entre psicólogos e sociólogos de finais do século XIX e inícios do século XX sempre esteve radicada na problemática relação entre indivíduo e sociedade – ou, para usar dos termos pertinentes ao ensaio por debater, entre autor e meio. Bem entendido, o que estava em jogo eram os pressupostos ontológicos, metódicos e epistemológicos que deveriam nortear a análise da vida social, determinando, afinal de contas, quem teria primazia na explicação científica, o indivíduo ou a sociedade? Para Weber (1864-1920), que abominava que o rotulassem de sociólogo, era o indivíduo; para Durkheim (1858-1917), que instituiu oficialmente a disciplina de sociologia na Academia Francesa, era a sociedade. No jargão da criminologia convencional, a problemática aparece na conhecida querela entre perspectivas de análise do fenômeno criminal, ora pendendo para a etiologia individual, ora, para a socioambiental. “E quanto a Marx (1818-1883)?” – alguém poderia indagar. Como veremos, para o autor de O Capital (assim como para Antonio Candido), tratava-se de um falso problema, revelador de uma inépcia olímpica.
Isto posto, e para introduzir-nos ao debate, Candido toma de empréstimo algumas linhas de Saint-Beuve (1804-1869)[1]:
O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade.
Lido com atenção, o raciocínio do crítico francês soa incomodamente individualista, ademais de um tanto falacioso, pois não é razoável supor – como o trecho acima parece sugerir – que a criatividade seja um atributo universalmente disseminado entre os que se dedicam à poesia. E, levando-se em conta o projeto que Candido quis fazer avançar, há uma outra elaboração, mais bem temperada, da qual poderíamos nos valer.
Publicando sistematicamente em revistas de vanguarda, um joveníssimo Jorge Luis Borges (1899-1986) afirmara que, no limite, só haveria duas estéticas: a estética passiva do espelho, na qual o indivíduo abandonaria a si mesmo no ambiente que o cerca, e a estética ativa dos prismas, em que o ambiente serviria de instrumento ao indivíduo. Advertia-nos, contudo, o escritor argentino, de que tais perspectivas não se achariam em relação de mútua excludência, dado que poderiam, perfeitamente, coexistir numa mesma obra.
A esse respeito, recorde-se o clássico ensaio de Lucia Miguel Pereira (1901-1959), a injustamente esquecida tia de Antonio Candido. Na sua História da Literatura Brasileira (1950), Lucia assinalou o forte traço de bovarismo[2] que, ao tempo do Segundo Reinado (1840-1889), imperava em nossas letras[3]:
Vestindo, comendo, morando e pensando à europeia, não tardaram os brasileiros a se iludir sobre si mesmos, a se acreditar em tudo e por tudo um povo mediterrâneo, transplantado para a América. Um povo velho habitando uma pátria nova. Esse estado de espírito talvez explique em parte a rápida assimilação do romantismo, que é, em última análise, o predomínio dos valores subjetivos. O próprio indianismo, que parece à primeira vista um movimento antieuropeu, entra no quadro do bovarismo, pois representa uma tentativa de recriação, ou até de criação de um passado. Todos os estudiosos do assunto concordam em que os índios foram os nossos cavaleiros e os nossos barões. Cavaleiros e barões de que precisávamos, não tanto para seguir a moda literária, quanto para nos sentir menos ‘desterrados em nossa própria terra’.
Pensando retrospectivamente, não foram poucos os casos em que, sob a máscara de uma estética ativa dos prismas, ocultou-se a face mais envergonhada e apassivada do espelhamento. E não há razões para crer que essa aparente dicotomia esteja prisioneira de considerações exclusivamente estéticas, sem que se pudesse, portanto, expandi-la para contemplar outros domínios teóricos. Em face da nossa própria história, concentrando-nos nas particularidades e singularidades que contribuíram para conformar o que aí está, haveríamos de perguntar: acaso a nossa criminologia e a nossa dogmática são mais afeitas à passividade reflexiva ou à atividade prismática?
Tornando ao ensaio de 1965, frise-se: Literatura e Sociedade. O emprego da conjunção aditiva entre os dois substantivos se justifica quando se compreende a natureza do programa de pesquisa inaugurado por Antonio Candido, impecavelmente resumido por Roberto Schwarz[4] (1938-), no subtítulo de Ao Vencedor as Batatas (1977): “forma literária e processo social (…)”. Por esse veio, o enfoque da crítica são as mediações concretas estabelecidas entre literatura e vida social, reiterando a lição elementar de que os seres humanos são, a um só tempo, autores e atores de sua história.
Consequentemente, e para enfrentar o imbróglio que tanto estimulou os sociólogos e psicólogos do passado, sustenta-se que a arte deve ser concebida na sua qualidade duplamente social[5]:
Depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais.
Encarada de um ponto de vista estritamente sociológico, a arte não é outra coisa senão um “sistema simbólico de comunicação inter-humana”[6]. A sugestão é notadamente disruptiva: por um lado, rompe com o individualismo metodológico, que confunde a análise do fenômeno literário com um embrenhar-se pela biografia de autores de gênio; por outro lado, rechaça as concepções estruturalistas, segundo as quais um exame rigoroso da ambiência do autor bastaria para compreender o que dali germinou.
O sistemismo de Candido reúne dialeticamente as posições em conflito para constituir algo novo. Afinal, da interação entre as partes e o todo, emergem propriedades que nem estão reduzidas a um, nem a outro, e é precisamente por isso que inexistem estruturas ensimesmadas: uma estrutura é, por definição, a propriedade de um sistema. Eis o porquê de Marx ter indicado que a estrutura do modo de produção deve ser buscada nas relações de produção da vida material; eis o porquê de Candido ter destacado as relações dialéticas entre indivíduo e meio, entre autor e público, entre literatura e vida social.
Observe-se, entretanto, que a dialética de Antonio Candido ainda exibe, aqui e acolá, um certo sotaque durkheimiano, manifesto em alguns trejeitos funcionalistas. A raiz do sotaque está na formação mesma do autor, graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, onde iniciou sua carreira docente, ao lado de Florestan Fernandes (1920-1995), sob a orientação de Fernando de Azevedo (1894-1974), seguramente o maior dos durkheimianos brasileiros.
Por mais que ambos tenham amadurecido enquanto intelectuais, revelando-se portadores de uma luz própria, suspeito que seu repertório teórico-analítico jamais se libertou por completo daqueles preceitos absorvidos de Princípios de Sociologia (1935) – hipótese que, talvez, não tenha lá muita importância. Seja como for, ao contrário de Florestan, que se adequou desde cedo à disciplina uspiana, redigindo textos que, não obstante revolucionários, eram marcados por aquele estilo arrevesado e maçante, típico do que se praticava no departamento de ciências sociais; Antonio Candido, que era uma personalidade encantadora, driblou com maestria a rabugice departamental: foi antioligárquico até na forma; autor de uma prosa leve e aprazível, que se pode ler como a um romance.
É nesse sentido, aliás, que se apanha um traço enigmático de sua obra. Procedendo uma extraordinária síntese dos caminhos que ele mesmo identificou na produção literária brasileira, Candido abriu para si uma nova vereda: com vistas às suas necessidades internas e ao público a que se dirigia, segregou-se do que vigia no espaço acadêmico e, assim, agregou um número exponencialmente maior de receptores, renovando o sistema simbólico da crítica literária, à luz do ensaísmo que seus professores e colegas haviam dado como morto e enterrado. O avançar das décadas parece ter provado que o defunto gozava de boa saúde, pois até Florestan Fernandes pôs de lado o jaleco, aprumou sua escrita e reconheceu o valor daqueles ensaios fundacionais. De uma maneira ou de outra, ambos fizeram Escola.
Notas de rodapé
[1] CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2014, p. 28.
[2] Por “bovarismo”, leia-se: insatisfação romântica que consiste em querer evadir-se de sua condição, adotando uma personalidade idealizada, como o fez a heroína do romance Madame Bovary, de Flaubert.
[3] PEREIRA, Lucia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 21
[4] Cf.: SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 6ª. Ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.
[5] CANDIDO, op. cit., p. 30.
[6] CANDIDO, op. cit., p. 31.