A sentença das medidas de segurança

A nova política antimanicomial do Poder Judiciário

Não é incomum que se diga que a criminologia crítica deveria se inspirar na luta antimanicomial para promover uma (há muito tempo necessária) reforma do sistema prisional. Só muito recentemente, no entanto, pude perceber a extensão e a força do movimento pela reforma do sistema psiquiátrico, inclusive no Brasil: insatisfeito com as já significativas vitórias, desde a progressiva substituição dos antigos hospitais psiquiátricos pela humanizada Rede de Atenção Psicossocial, até a promulgação da Lei 10.216/2001, que garante direitos aos portadores de transtornos mentais, o movimento antimanicomial brasileiro insiste na luta pela plena e irrestrita aplicação da reforma psiquiátrica iniciada.

Foi assim, num esforço conjunto entre o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça, que em fevereiro deste ano foi publicada a Resolução n. 487 do Conselho Nacional de Justiça, para a implementação da “nova” política antimanicomial do Poder Judiciário, como forma de garantir a aplicação integral da Lei 10.216/2001 – inclusive no âmbito da justiça penal. Digo “nova”, porque nada mais é do que uma regulamentação que reforça o que já é percebido há vários anos pela mais atenta criminologia e penalismo críticos: a implementação do modelo assistencial promovido pela lei antimanicomial no Brasil foi ignorada no âmbito da justiça penal[1], que continua, até hoje, vinculada à obsoleta ideia de medidas de segurança, uma herança perniciosa do positivismo criminológico do século XIX.

Em primeiro lugar, esse novo modelo de política para a saúde mental, inspirado nos avanços da luta antimanicomial italiana capitaneada pelo psiquiatra Franco Basaglia, representa um avanço simbólico no tratamento de pessoas com transtorno mental justamente porque rejeita o antigo conceito de doença mental. Muito menos estigmatizante, o conceito de transtorno mental não permite compreender a pessoa como anômala ou defeituosa, mas como um indivíduo saudável, cujas especiais condições psíquicas são merecedoras de cuidado e atenção humanizados[2]

Além disso, se afasta do regime de execução das medidas de segurança em favor de medidas protetivas, que introduzem mudanças de caráter humanitário e cidadão no tratamento de pessoas portadoras de transtornos mentais. Assim, os notórios problemas de legalidade das medidas de segurança parecem superados, acolhendo o tratamento de autores inimputáveis pela justiça criminal aos princípios de um direito penal moderno e democrático. Isso também representa uma ruptura com o abstrato e arbitrário conceito de periculosidade criminal, pelo qual o destino de um cidadão inimputável se fiava no prognóstico de comportamento criminoso futuro através de um laudo psiquiátrico nem sempre confiável, capaz de determinar a segregação de indivíduos por tempo indeterminado em instituições asilares de tratamento psiquiátrico.

A Lei Antimanicomial (10.216/2001) representa um avanço na medida em que define direitos de pessoas portadoras de transtorno mental, entre eles o direito de receber tratamento em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Também condiciona a internação psiquiátrica à inexistência de recursos extra-hospitalares para as especificidades do paciente, e subordina toda e qualquer internação à existência de laudo circunstanciado, produzido por equipe biopsicossocial multidisciplinar. Mais importante que isso, a implementação da nova política antimanicomial do Poder Judiciário tem importantes efeitos pragmáticos: afasta as práticas anacrônicas e degradantes típicas dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ambiente por excelência de execução das medidas de segurança, porque a finalidade de todo tratamento deve ser a reinserção social do indivíduo.

Parece evidente, portanto, o progresso que a Resolução n. 487 do Conselho Nacional de Justiça representa, ao promover a regulamentação da Lei 10.216/2001 para o Poder Judiciário: um avanço na direção de um sistema de justiça criminal um pouco menos segregador, ainda que apenas em relação a uma parcela muito pequena daqueles que são por ele afetados. A diretriz é por uma desinstitucionalização global e irrestrita do sistema psiquiátrico brasileiro, pela atuação de todas as instituições jurídicas e administrativas envolvias desde as audiências de custódia até o funcionamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Não por menos essa Resolução é objeto de escrutínio e mentiras por parte de movimentos reacionários: entre projetos de Lei que objetivam minar os avanços da luta antimanicomial e estratégias políticas para sustar os efeitos da Resolução n. 487 do CNJ[3], há caminho ainda para a efetiva implementação da política antimanicomial do Poder Judiciário – o que não falta, como nos mostra a luta coletiva, é fôlego.

Notas de rodapé

[1] BRANCO, Thayara Castelo. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil.  Belo Horizonte: D’Plácito Editora, 2016.

[2] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 10ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022.

[3] A exemplo do Projeto de Decreto Legislativo n. 81/2023, aprovado no último mês na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.

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