Jules Michelet (1798-1874), reiterando preocupações tipicamente rousseaunianas, enfatizou ao máximo a primazia da educação como determinação para uma equilibrada participação na política[i]. Anos mais tarde, Otto von Bismarck (1815-1898), o chanceler de ferro, haveria definido a política como “a arte do possível” – uma frase de inconfundível teor conservador e que, por isso mesmo, foi historicamente reformulada, para que incorporasse a dinamicidade e a conflitualidade intrínsecas à política, essa nobre “arte de transformar necessidades em possibilidades”.
Assumindo-se a centralidade da política na vida social, é mais do que natural que um jovem entusiasmado, ao perquirir diferentes famílias de pensamento, acabe por vincular-se àquela mais condizente com suas aspirações, crenças e valores. Seja qual for a posição adotada – e convém lembrar que posições políticas podem mudar! –, é preciso precaver-se quanto aos constantes riscos de embrutecimento.
Fiel às suas convicções e aos princípios que adotou para si, é comum que o jovem militante passe a conviver com pessoas que comunguem daquelas mesmas ideias, o que, por óbvio, é plenamente legítimo. O problema é que, aos poucos, sem dar-se conta, aquele sujeito, anteriormente onívoro e de apetites intelectuais diversificados, não apenas passa a satisfazer-se com o mesmo enlatado teórico cotidiano; adquire, conjuntamente, o hábito de tentar empurrá-lo, goela abaixo, a quem quer que lhe apareça pela frente. O cacoete é dos mais significativos, pois sempre que a razão e o debate esclarecido perdem espaço para o dogmatismo e a intransigência, tome-se por certo: a filosofia vai sendo colonizada e aniquilada pela fobosofia – a cátedra ideológica dos inimigos do conhecimento.
Aliás, abrindo um brevíssimo parêntesis, não é de admirar que aqueles almoços dominicais em família, outrora tão aguardados e prazerosos, ultimamente venham sendo retratados, aqui e acolá, no campo de guerra das redes sociais, como se fossem uma espécie de suplício semanal. É até razoável supor que quase todo mundo tenha um parente chato para chamar de seu; porém, quando quase todos eles são rebaixados à condição de insuportabilidade, cabe indagar se não é o próprio observador o chato de plantão…
Em todo caso, o entrincheiramento em uma dada igrejinha política, acimentada pelos dogmas esotéricos da tribo, é um grave sintoma de insegurança intelectual e preguiça mental. Em ambientes tais, a leitura, que deveria servir para formar e informar o leitor, reformando-o e transformando-o no curso de seu desenvolvimento pessoal e social, não fará mais que conformá-lo a uma situação invariavelmente deformadora.
No que respeita à teoria social, recomenda-se, de maneira acertada, a leitura de Marx, Weber e Durkheim – clássicos de repercussão universal, cujo paralelo nativo haveríamos de buscar nas obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Todavia, à medida que nos distanciamos dos clássicos, que deveriam ser de leitura e releitura obrigatórias em centros de excelência, as fidelidades pessoais vão-se exacerbando em ritmo de adoração e deferência: marxistas limitam-se a ler marxistas, weberianos se comportam de maneira análoga, e o mesmo deve valer para os durkheimianos, onde quer que eles estejam…
Em face de mentalidades tão embrutecidas, bastaria um conciso reparo: nenhum pensador digno de menção procedeu desta maneira. Os gigantes do passado, e até mesmo outros tantos pensadores menores, galgaram seus respectivos patamares culturais justamente por se terem enfurnado em bibliotecas e devorado tudo o que lá encontraram. Com o passar do tempo, é natural que os critérios de seleção de autores e obras se aperfeiçoem, que o leitor passe a discernir, com mais refinamento, entre o que é essencial e o que é meramente acessório. Contudo, isto certamente não se confunde com a atitude canhestra e ignara dos que, por puro preconceito, passam a rechaçar, aprioristicamente, quaisquer autores pertencentes a este ou àquele polo do espectro político.
A título de exemplo, a última quadra do século passado foi particularmente frutífera; uma sementeira de autores ilustres, cujas obras, multidimensionais, foram o ponto de arranque para um riquíssimo debate teórico, ainda em voga. Contentemo-nos com seis deles[ii]: Amartya Sen (1933-), Gerald Cohen (1941-2009), John Rawls (1921-2002), Martha Nussbaum (1947-), Robert Nozick (1938-2002), Ronald Dworkin (1931-2013). São autores para todos os gostos, exceto para aqueles que tenham o mau-gosto de rejeitar a diversidade de argumentos e ideias…
Notas de rodapé
[i] “Qual é a primeira parte da política? A educação. E a segunda? A educação. E a terceira? A educação.” IN: MICHELET, Jules. O povo. Trad.: Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 229.
[ii] Atente-se especialmente para: COHEN, G. A. Rescuing justice and equality. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cambridge: Harvard University Press, 2002; NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. New York: Basic Books, 2013; NUSSBAUM, Martha C. Creating capabilities: the human development approach. Cambridge: Harvard University Press, 2011; RAWLS, John. A theory of justice: revised edition. Cambridge: Harvard University Press, 1999; SEN, Amartya. Development as freedom. New York: Alfred A. Knopf, 2000.