Ninguém é absolutamente favorável à criminalização

Das páginas ineludíveis de Aristóteles (384-322 a.C.), retira-se o postulado embrionário das nossas relações de sociabilidade: somos animais políticos[1], imersos, desde sempre, em um oceano de contradições. Se é assim, viver em sociedade implica, em larga medida, um constante esforço de convivência, de cujas interações emergem toda a grandeza e decadência de nossas formas de sociabilidade: cooperação e competição, solidariedade e egoísmo, compaixão e indiferença.

Em seu mais novo êxito editorial[2], Robert Sapolsky (1957-), que jamais se esquivou de temas controversos, enfrentando-os com notável bom-humor e didatismo, decidiu principiar o texto, compartilhando algumas de suas angústias internas com seus leitores; aquelas contradições, mais ou menos latentes em cada um de nós, mas que raramente são verbalizadas em público. Desse breve exercício de introspecção, Sapolsky alcança uma conclusão universalizável[3]:

Em outras palavras, carrego um arranjo confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição. Assim como a maioria dos seres humanos.

Ou, explicando de uma maneira ainda mais óbvia: nossa espécie tem problemas com violência. Dispomos dos meios para criar milhares de cogumelos atômicos; chuveiros e sistemas de ventilação de metrôs já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; estupros em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; existem bairros onde todo mundo, dos entregadores de pizza aos bombeiros, temem por sua segurança. E há formas mais sutis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos nos machucando.

São fatos terríveis, claro está, e tanto pior é a tese que eles embasam: se engana quem acha que a violência é uma espécie de doença que pretendemos erradicar, pois, com a devida franqueza, nós não a odiamos absolutamente; nossa aversão está inteiramente dirigida ao “tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado[4].

Robert Sapolsky

Numerosos exemplos poderiam ser elencados para corroborar a tese do autor, mas dificilmente algum deles seria tão apropriado e elucidativo quanto o modo como opera o nosso sistema penal: a encarnação institucionalizada do punitivismo.

A fim de fornecer uma definição preliminar, poder-se-ia dizer que o punitivismo compreende a crença na punição enquanto solução universal para a conflitualidade social. Na prática, a mais ínfima oposição à infalibilidade punitiva costuma suscitar reações coléricas: os fieis protestam contra o conjunto de garantias processuais e princípios constitucionais, interpretados como obstáculos ao efetivo combate à criminalidade. Na perspectiva punitivista, a (de)limitação do poder punitivo – que, aliás, nos foi legada pelo liberalismo clássico – é prontamente representada como sinônimo de conivência com a criminalidade.

Trata-se de fenômeno complexo, de múltiplas dimensões. Fiquemos apenas com uma, que parece ser a mais explícita: a alienação. O termo tem uma longa história e uma ponderável polissemia, uma vez que foi empregado, desde inícios do século XV, para denotar fenômenos tão distintos quanto o estranhamento do indivíduo em face do Criador, as transferências relativas ao direito de propriedade e, para rememorar o clássico machadiano, estados médicos de perturbação mental. Entrementes, na modernidade, enquanto categoria teórica propriamente dita, as discussões sobre alienação tem seu marco em Hegel[5] (1770-1831), são reformuladas por Feuerbach (1804-1872) e, uma vez mais, reelaboradas por Marx (1818-1883).

No que concerne à obra marxiana, alguns rudimentos categoriais já se fazem notar em Sobre a questão judaica[6] (1843), mas foram aprofundados, sob a influência decisiva de Engels (1820-1895), pela guinada para a crítica da economia política. Marx pôs-se a investigar o chamado mundo do trabalho, partindo das relações de produção estruturantes da sociedade burguesa, ao que pôde elaborar a categoria trabalho alienado[7]: o modo de ser e de existir do trabalho sob o modo de produção capitalista.

Sem contestar o brilhantismo dos Manuscritos de 1844, o fato é que, neles, Marx se limitou a discutir algumas formas específicas de alienação, sem contudo fornecer uma resposta direta à pergunta: “o que é alienação?”. Apesar disso, do exame das espécies de alienação elencadas por Marx, é perfeitamente possível depreender uma categoria teórica, e quem o demonstrou magistralmente foi o professor David Leopold, da Oxford University, em seu formidável The young Karl Marx (2007).

A formulação de Leopold é tão simples que deslumbra: a alienação corresponde a um tipo de relação disfuncional entre entidades[8], ou, de modo ainda mais claro, consiste na separação problemática entre um sujeito e um objeto, que pertencem adequadamente um ao outro[9]. Destrinchemos as partes componentes da definição, à luz dos esclarecimentos do próprio autor[10]:

(a) Sujeito → Tipicamente, mas não necessariamente, uma pessoa, podendo também corresponder a um grupo, por exemplo.

(b) Objeto → Entidade que pode assumir uma variedade de formas: (b1) um não sujeito (“o sujeito está alienado de uma instituição de ensino”); (b2) um sujeito ou um grupo de sujeitos (“o sujeito está alienado de sua família”); (b3) a si mesmo (“o sujeito está alienado de si mesmo”).

(c) Separação → O termo é abrangente, sugerindo: ruptura, isolamento, hostilidade etc.

(d) Problemática → A separação frustra ou colide com a harmonia ou conexão adequada entre o sujeito e o objeto.

(e) Adequadamente → Indica que a relação de pertencimento é racional, natural ou boa; ao que a eventual separação seria irracional, artificial ou má.

Como se pode observar, a pesquisa de Leopold abre um novo filão para a criminologia crítica, convidando-nos a pensar os processos de criminalização enquanto formas específicas de alienação. Se é mais do que consabido que tais processos operam na chave da seletividade, a criminalização, enquanto forma de violência (legítima ou não) remete à discussão de Sapolsky sobre o tema: ninguém é absolutamente favorável à criminalização, mas apenas ao tipo “certo” de criminalização, aquela que ocorre no contexto “certo”.

Sob o prisma punitivista, a criminalização até pode ser defendida como uma panaceia social, mas essa retórica não é universalizável, coisa que se verifica sempre que o mais encarniçado defensor da punição se vê confrontado com a hipótese da sua própria criminalização ou da criminalização daqueles que integram sua rede de afinidades.

Em uma sociedade dividida em classes sociais, entende-se bem o traço alienante dos processos de criminalização, que segregam, hostilizam e isolam os mais vulneráveis. Isto posto, a seletividade do sistema penal reflete, sobretudo, a perspectiva amplamente compartilhada e reproduzida, segundo a qual só é legítima, necessária e desejável a criminalização do outro.

Para fazermos frente à mentalidade punitiva, é fundamental que aprofundemos o debate sobre a alienação, que, sem sede criminológica, parece reanimar as palavras reacionárias de Joseph de Maistre (1753-1821), para quem o carrasco seria o pilar da ordem social[11].

Notas de rodapé

[1] No original, “zoon politikon”. Cf.: ARISTOTLE. Politics. In: BARNES, Jonathan (ed.). The complete works of Aristotle, vol. 2. New Jersey: Princeton University Press, 1995, p. 1987.

[2] SAPOLSKY, Robert. Comporte-se: a biologia humana em nosso melhor e pior. Trad.: Giovane Salimena e Vanessa Barbara. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[3] Ibidem, p. 2.

[4] Ibidem, p. 3.

[5]Entfremdung”, do verbo “entfremden” (alienar); ou “Entäusserung”, do verbo “entäussern” (externar ou exteriorizar). Para Hegel, a alienação compreenderia um estágio de desunião que, emergindo de uma unidade simples, é posteriormente reconciliado em uma unidade diferenciada. Observe-se o seguinte exemplo dialético: a família aparece como unidade simples e indiferenciada (afirmação), a sociedade, em razão do conflito de interesses entre as distintas famílias que a compõem, consistiria em desunião e diferenciação (negação), ao que o Estado, produtor de uma linguagem comum (direitos e deveres) e da figura mesma do cidadão, haveria de reconciliar os opostos em uma unidade complexa e diferenciada (negação da negação). Para um tratamento deste e de outros tantos conceitos hegelianos, cf.: INWOOD, Michael. A Hegel dictionary. Oxford: Blackwell Publishers, 2003.

[6] Cf.: MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad.: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.

[7] Cf.: MARX, Karl. Cadernos de Paris & manuscritos econômico-filosóficos. Trad.: José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

[8] LEOPOLD, David. The young Karl Marx: german philosophy, modern politics, and human flourishing. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 67.

[9] LEOPOLD, David. Alienation. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy.

[10] Idem.

[11] MAISTRE, Joseph de. St. Petersburg dialogues. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1983, p. 207.

Outros artigos

Continue seus estudos

Darcy Ribeiro
Introcrim
Caio Patricio de Almeida

Darcy Ribeiro

O legado de luta e esperança