Atlas do pensamento criminológico brasileiro: uma obra de reverência

Nada há de novo sob o sol

Na semana passada, precisamente aos 27 de fevereiro, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) promoveu o lançamento do aguardado Atlas do pensamento criminológico brasileiro (2022), obra coordenada por Leandro Ayres França e que tem como organizadores Carlos A. F. Abreu, Jéssica Veleda Quevedo e Breno Corrêa Vasconcelos.

Abertamente inspirado no utilíssimo Fifty key thinkers in criminology (Routledge, 2010), o livro ambiciona preencher um vazio histórico de nossas letras, fornecendo um mapeamento do pensamento criminológico brasileiro deste início de século XXI, a fim de servir de obra de referência às novas gerações interessadas, inscrevendo-se, assim, entre os que empenham esforços para o desenvolvimento de “criminologias do Sul Global”[1].

Na maioria das vezes, o processo de elaboração de listagens dessa natureza pode se mostrar muito atraente, refletindo uma sadia inclinação humana para, periodicamente, separar o joio do trigo – ou, o que é mais frequente, tentar encontrar o trigo no joio. Entrementes, os resultados da empreitada costumam ensejar inúmeras controvérsias – algumas delas, muito bem equilibradas e construtivas; outras, oscilando entre a leviandade e o disparate, quase sempre expondo algumas notas de egolatria.

Em face desta dualidade de reações possíveis, aqueles que porventura se voluntariem para uma tarefa tão espinhosa fariam bem em cultivar uma boa dose de savoir-faire. Ainda assim, talvez estejam corretos os que defendem que parte do divertimento relativo ao processo resida nas inevitáveis discussões e debates fomentados pela divulgação da listagem final[2].

Divertindo-se ou não, é óbvio que não se vai à liça desarmado: é fundamental que se estabeleça, desde o princípio, uma metodologia compatível com o objeto da investigação, de modo a suprimir, na medida do possível, vieses que possam vir a comprometer a boa execução do projeto, e garantir, assim, um grau satisfatório de objetividade.

Em se tratando do Atlas do pensamento criminológico brasileiro, o plano era selecionar criminólogos brasileiros que, em razão de sua notável contribuição teórica para o campo de pesquisa criminológica, teriam passado a moldar as discussões contemporâneas. Vejamos, então, como procederam, metodologicamente, o coordenador e os organizadores da obra.

Com o intuito de estipular o conjunto de intelectuais que integrariam o elenco final, optou-se pela aplicação de questionários virtuais, encaminhados a todas as Instituições de Ensino Superior (IES) que obedecessem a dois critérios: (a) tivessem sido avaliadas pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE, 2018); (b) pudessem ser contactadas via e-mail.

De um total de 1.104 IES inventariadas, foram enviados 798 e-mails, resultando em 200 questionários respondidos por professores de disciplinas de criminologia, direito penal e direito processual penal, em distintas etapas de formação acadêmica. Com base nas respostas, alcançou-se a marca de 137 nomes, 87 dos quais tiveram de ser imediatamente descartados, já que não atendiam aos critérios previamente estabelecidos: 11 eram estrangeiros não radicados no Brasil; 69 estavam estritamente vinculados à dogmática penal ou processual penal; 7 não eram teóricos propriamente ditos, limitando-se à escritura de manuais. Dos 50 autores remanescentes, apenas os 14 mais votados galgaram o panteão dos indispensáveis, mas logo foram acompanhados de outros 6, cuja omissão seria inadmissível aos olhos dos editores[3].

Diante dos resultados obtidos, vão aqui alguns apontamentos críticos.

1. Já foi sublinhada a importância que a metodologia desempenha na produção de uma pesquisa acadêmica – razão pela qual pesquisadores em formação consagram tantas horas ao aprendizado de técnicas que haverão de municiá-los para o trabalho intelectual. Todavia, aventurando-nos pelo mundo real, somos invariavelmente confrontados por uma série de adversidades que, se não impossibilitam a continuidade da jornada, impõem mudanças de itinerário. Da prática, recolhe-se uma lição elementar: uma vez que inexiste metodologia infalível, retificações e reajustes são imprescindíveis, sempre e quando, em contato com o objeto, as escolhas prévias se mostrem descabidas ou inapropriadas. Afinal, cabe recordar: para um martelo, tudo se assemelha a um prego.

1.1. Apesar de não conhecermos o questionário aplicado, não se discute que o emprego de tal ferramenta possa ser bastante útil e elucidativo, porém, como ficou comprovado pela amostragem apresentada, boa parte dos entrevistados sequer foi capaz de compreender o que se lhes perguntava e, não por acaso, 63,5% dos nomes coletados tiveram de ser rejeitados. Por conseguinte, a metodologia escolhida ilustrou, mais uma vez, a profunda ignorância de uma parcela significativa de nossos docentes em matéria criminológica.

2. Contudo, ainda que mantivessem a estrita adesão à metodologia precedente, não ficou claro o porquê de, em vista dos 50 nomes obtidos, 36 (72%) deles terem sido prontamente recusados. Está certo que os 14 eleitos granjearam uma votação das mais expressivas, mas isso não autoriza, ao menos em princípio, a instantânea exclusão dos demais. Afinal, a inspiração do trabalho não foi justamente o renomado Fifty key thinkers in criminology? Levando em conta que lidamos com pesquisa acadêmica, é recomendável que a íntegra dos resultados fosse divulgada. Por mais que certas omissões eventualmente firam as suscetibilidades de alguns intelectuais ou grupos, a produção de conhecimento não costuma frutificar em ambientes onde não semeamos o espírito público e o dever de transparência.

3. Tudo mais constante, suponha-se que a metodologia adotada (mas não inteiramente esclarecida) fosse conducente à exclusão de 36 dos 50 nomes obtidos. Pergunta-se: em que medida a mesma metodologia facultava a incorporação de outros 6 autores (30% da listagem final), por mais relevantes que possam ser? É legítimo contraditar a própria metodologia, incorrendo em arbitrariedade, e trocar 36 por meia dúzia?

3.1. Bem entendido, não se está questionando a relevância teórica dos 6 selecionados (e nem a dos outros 14), mas sim a ausência de coerência metodológica de quem capitaneou o projeto. Ora, se era para proceder dessa maneira, qual o sentido de envolver a obra com o manto do compromisso metodológico? Que listassem logo as próprias preferências e produzissem, a partir delas, o melhor livro possível. Pode até ser que a alternativa não fosse a mais conveniente, do ponto de vista teórico, mas é indubitavelmente a mais honesta, do ponto de vista intelectual.

4. No que tange aos 20 eleitos – seja por aclamação popular, seja por imposição editorial –, um breve comentário deve bastar. Foram selecionados dois autores do século XIX: Tobias Barreto (1839-1889), sobre o qual já se escreveu nesta coluna[4], permaneceu deitado em seu leito de rosas, sobejamente treslido e desproporcionalmente valorizado; e Nina Rodrigues (1862-1906), cujas páginas já foram sistematicamente esquadrinhadas, obviamente foi o único a merecer um tratamento crítico rigoroso, se bem que, a julgar pela reputação da personagem, a incumbência é das mais triviais, tão fácil quanto beber água. De resto, perdura o inadmissível lapso histórico: um silêncio sepulcral acerca de toda a primeira metade do século XX, salvo por alguma menção a Roberto Lyra (pai), que sequer foi agraciado com um capítulo seu. Se o livro é direcionado aos iniciantes, a imagem que fica é a de um conto de fadas, em que a criminologia brasileira dá seus primeiros suspiros em finais do século XIX, adormece por mais de meio século, apenas para ser despertada pelo beijo da crítica, durante a ditadura civil-militar.

4.1. Quanto ao título, dificilmente se poderia propor algo mais desarrazoado. O que se encontra, na melhor das hipóteses, são “Vinte pensadores-chave em criminologia brasileira”. É evidente que não se contesta a pureza das intenções dos responsáveis, mas convenhamos que certos descuidos extrapolam todos os limites aceitáveis: chamar de “atlas” uma cartografia tão primitiva e abreviada é testar, e muito, a paciência do leitor, ademais de valer uma piada pronta, pois alguém poderia argumentar que o título é, na verdade, um anagrama de “salta”, fixado para exprimir a atitude dos editores em face de longos períodos históricos.

5. Por fim, e não menos importante, perpetuou-se o velho e conhecido vício da confusão entre livros de homenagens e obras de referência. Da leitura atenta dos capítulos, não se extrai qualquer tratamento crítico de autores e obras[5], e sim testemunhos de admiração, que, não raro, assumem uma tônica quase reverencial, precedidos de alguns apontamentos biográficos e sucedidos de indicações bibliográficas. Aos que se interessarem pelo “Atlas”, decerto travarão contato com muitas informações pertinentes e fontes estimulantes, mas estejam avisados: naquilo que concerne aos parâmetros críticos, ainda estarão muito distantes do mapa da mina; o que estão prestes a folhear não configura uma obra de referência, e sim mais uma obra de reverência. Nada há de novo sob o sol.

Notas de Rodapé

[1] FRANÇA, Leandro Ayres (coord.). Atlas do pensamento criminológico brasileiro: um mapeamento de autores e obras. 1ª. Ed. São Paulo: Blimunda, 2022, pp. 4-5.

[2] HAYWARD, Keith; MARUNA, Shadd; MOONEY, Jayne (eds.). Fifty key thinkers of criminology. New York: Routledge, 2010, p. xvii.

[3] Respectivamente: Alba Maria Zaluar, Carmen Hein de Campos, Luciano Góes, Maria Lucia Karam, Raimundo Nina Rodrigues, Teresa Pires do Rio Caldeira. In: Op. cit., p. 7.

[4] https://www.introcrim.com.br/post/tobias-or-not-tobias

[5] Salvo no caso de Raimundo Nina Rodrigues, como era de se esperar.

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