O Carnaval começou a ser celebrado no Brasil ainda no período colonial, a partir do entrudo, que poderia ser realizado de diversas formas, sendo a mais conhecida o jogo das molhadelas, em que a brincadeira era molhar as pessoas que passavam na rua, muitas vezes jogando balões com um líquido fedorento.
O governo não pode ver a população feliz, não é mesmo? Então, a partir do século XIX, veio a repressão, mas não de forma erga omnes. Isso porque a chamada elite criava os bailes de carnaval em ambientes fechados – de acesso a poucos – como clubes e teatros, sem qualquer tipo de impedimento.
Era preciso controlar os corpos de uma população negra agora liberta. Dois anos depois da assinatura da Lei Áurea, com a promulgação do Código Penal, foi tipificado o crime de vadiagem, que enquadrava pessoas que estivessem simplesmente andando pelas ruas sem comprovação de trabalho. E, naquela época, em 1890, pouco tempo depois do término – formal – da escravidão, quem seriam as pessoas presas por tal crime?
Nascido em 1887, João da Baiana é considerado o nosso primeiro sambista e, quando andava pelas ruas do Rio com o seu pandeiro, frequentemente tinha problemas com a polícia, que chegou a reter o seu instrumento como prova do crime de vadiagem. Sabe como a questão foi resolvida? Quando o senador Pinheiro Machado, que adorava samba, foi informado de que o sambista tinha faltado a uma roda por ter sido confiscado seu instrumento. O político chamou Baiana em seu gabinete e escreveu no pandeiro “A minha admiração, João da Baiana. Senador Pinheiro Machado”. Só a partir daí, Baiana passou a andar pelas ruas com o pandeiro sem se preocupar com a polícia, já que trazia consigo uma espécie de habeas corpus preventivo, tamanha a influência do político.
Como você pode perceber, o Carnaval e o samba, para serem bem recebidos, tinham que ter uma cor. E não seria a negra. É por isso que, com a história do samba, do Carnaval e das Escolas de Samba, temos de um lado o racismo recreativo e o embranquecimento e do outro, a resistência.
As marchinhas de Carnaval, por exemplo, tiveram início em 1899 com a composição de uma mulher: Chiquinha Gonzaga. Ela abriu caminhos, abriu alas. Durante o período de 1920 e 1960 diversas marchinhas foram compostas, tendo como característica a letra simples, de fácil memorização (para grudar feito chiclete). Muitas continham humor, ironia e críticas sociais. Outras, eram um reflexo do racismo presente no Brasil e, como ainda vivemos o mito da democracia racial, até hoje são tocadas em blocos.
Composta em 1929, O teu cabelo não nega é um bom exemplo disso. A marchinha hipersexualiza a então chamada mulata, com quem o cantor quer se relacionar apenas porque a cor dela não será para ele passada, além de falar sobre o seu cabelo.
O teu cabelo não nega, mulata. Porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata. Mulata eu quero o seu amor.
Esta não é a única marchinha racista. Infelizmente, podemos citar outras, como Nega maluca, Mulata Bossa Nova. Até hoje, o cabelo de pessoas negras ganha adjetivos negativos, como “ruim” e “duro” por racistas. E há quem se fantasie, em pleno século XXI, de mulher negra, colocando uma peruca e pintando o rosto de preto, praticando blackface.
No Rio de Janeiro, em Angra dos Reis, há um bloco chamado Nega maluca. Diversas pessoas saem às ruas para brincar o Carnaval praticando racismo recreativo, propagando e reforçando estereótipos. Não é piada, muito menos “homenagem”, como alguns tentam justificar.
Em um passado não muito distante, mais precisamente no carnaval de 2018, a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro teve integrantes em sua bateria desfilando com o rosto pintado de preto[1].
Como bem explica o professor Adilson Moreira[2],
O humor racista não possui uma natureza benigna, porque ele é um meio de propagação de hostilidade racial. Ele faz parte de um projeto de dominação que chamaremos de racismo recreativo. Esse conceito designa um tipo específico de opressão racial: a circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor.
Humor não combina com preconceito, tentativas de ridicularização e inferiorização. Cantar marchinhas racistas, lgbtfóbicas, machistas, não é divertido. E antes que digam “descansa, militante… parece que agora tudo é um problema, não se pode mais nem cantar uma mera música”, eu rebato o “argumento”: o que estas pessoas chamam de “mimimi” é, na verdade, a dor que dói no outro. Indígenas, pessoas negras, mulheres não são fantasias. Não podemos mais reproduzir estereótipos, usados como tentativa de dominação de minorias.
Neste carnaval, pode colocar o seu bloco na rua, desde que ele seja despido de preconceitos. O Zezé, que tem uma vasta cabeleira, pode (e deve) ser quem ele é, a orientação sexual da Maria não é da sua conta, o indígena (e não “índio”) não quer apito, quer demarcação de suas terras. E todas as pessoas querem a mesma coisa: respeito.
Notas de Rodapé
[1] Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/carnaval/2018/salgueiro-usa-black-face-em-integrantes-da-escola-provoca-polemica-nas-redes-sociais-1-22393081 . Acesso em 15 fev. 2023.
[2] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2009. p. 31.