A semana começou com uma notícia difícil de processar. A chuva (que não era de prata) caía no Rio de Janeiro, no dia em que a filha de Iansã se despedia de nós. Torci para que fosse fake news ao ler a notícia. Não era.
Comecei então a me lembrar de vários momentos em que a música de Gal se fez – e ainda faz – presente. Desde a mais presente, no quadrinho que fiz com um trecho de “Futuros amantes” – música de Chico Buarque que fez parte do álbum “Mina d´água do meu canto” – até a mais remota, dos tempos de criança, em que adorava mexer na coleção de vinis do meu pai e minha mãe e Gal já estava presente.
Por tudo o que ela representou, não tinha como escrever a coluna desta semana – cujo tema central gira em torno de arte e questões raciais e de gênero – sem falar de Gal, de sua importância e grandiosidade. Aliás, enquanto escrevo estas linhas, ouço suas músicas, com sua voz inconfundível que sempre me motiva.
Como tudo começou…
Maria da Graça nasceu na primavera de 1945, em Salvador. Quando ainda nem tinha ganhado o nome artístico Gal Costa – dado pelo produtor Guilherme Araujo[1] – encontrou João Gilberto, que não hesitou em dizer que ela era a maior cantora do Brasil. Será que sua mãe, quando ainda estava grávida, de tanto ouvir música e desejar que Maria fosse cantora tenha contribuído para a sua musicalidade?
O fato é que Gal tinha uma voz doce e suave. Disciplinada, desde criança dizia que queria ser cantora (e cobradora de ônibus) e assim estudava em casa: segurava uma panela para a ressonância, dentro do banheiro e cantava. Prendia a respiração no diafragma e assim seguia, descobrindo e estudando de forma autodidata, o canto.
Divino Maravilhoso
Na década de 60, ela participa do I Festival Internacional da Canção, com a música “Minha senhora”, de Gil e Torquato Neto, que seria incluída no álbum “Domingo”, de 1967, feito em parceria com Caetano Veloso. Sobre o processo de gravação do disco, Gal disse que, como era gravado às 9 da manhã, horário disponível no estúdio, era algo bem difícil para os dois, que dormiam tarde.
Nos anos seguintes, Gal participa de festivais e, quando Caetano e Gil deram a ela “Divino Maravilhoso”, a cantora já estava em transformação, ouvindo Janis Joplin, Hendrix e Beatles. O tropicalismo já estava em ebulição[2]. Inclusive, ao cantar a música no IV Festival da Música Popular Brasileira, ouviu-se vaias e aplausos e pouco tempo depois, o Ato Institucional 5 (ai-5), é promulgado, fazendo com que Caetano e Gil, autores da música, fossem presos por “desrespeito ao hino nacional e à bandeira” e exilados.
Sem tempo de temer a morte
Durante o exílio de Caetano e Gil em Londres, que durou até 1972, Gal permanece no Brasil, cantando músicas como “Se você pensa”: sempre que a cantava, era como se fosse um grito, dizia. À parceria tão afinada e duradoura com os dois ela atribuía a uma conexão espiritual.
Com seus irmãos no exílio, Gal não parava por aqui. Em 1969, lança seu primeiro álbum solo, com clássicas como “Baby” e “Divino maravilhoso”.
Sociedade careta
A sociedade era careta, dizia. E uma sociedade careta não conseguia conceber a potência desta mulher: Gal era frequentemente agredida verbalmente: “usava aquelas roupas, era natural, não era só para show. Me chamavam de piolhenta e suja. Não era só o fato de Caetano e Gil estarem presos que me angustiava muito, mas o fato de carregar tudo aquilo. Era um peso imenso”. E ela seguia, segurando a guitarra como quem segura uma arma, defendendo sua arte, sua música.
Gal Fa-tal
Desafiando a ditadura, em outubro de 1971, no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana no Rio de Janeiro, Gal lança seu show “Fa-tal”. O show foi considerado um símbolo de resistência e contracultura. E Gal seguia… atenta e forte.
Censura nunca mais!
O álbum “Índia”, lançado em 1973, teve a capa censurada pela ditadura e, por isso, era vendido em um plástico. Inclusive, uma das músicas, de Luiz Melodia, “Presente cotidiano”, também foi censurada. Inacreditavelmente, apenas em 2015 a censura foi derrubada e Gal, em comemoração, colocou as fotos nas redes sociais.
Ao longo das décadas, Gal gravou grandes nomes da música brasileira, como Jorge Ben, Caetano, Gil, Lulu Santos, Chico Buarque, Tom Jobim e Moraes Moreira dando a cada música um toque todo seu como intérprete.
Brasil: mostre a sua cara!
Na década de 90, veio o polêmico show no Imperator, cantando a música “Brasil”, com a camisa aberta e os seios à mostra. Segundo ela, polêmica lamentável, já que as pessoas “focaram só no peito” (assim como ocorreu com as fotos do álbum “India”).
Não conseguiam compreender a grandiosidade da arte, da sua entrega e comprometimento com a música. Ali, a sociedade patriarcal via apenas o corpo de uma mulher e não uma artista fazendo sua manifestação em um palco.
Nunca teve medo de se arriscar. “A música é amor, transformação… a música cura”. A cada década, uma faceta de Gal e com isso, com esta coragem, conquistava a juventude. Apesar de toda coragem, não sabia dizer “não”. Isso acontece com muitas mulheres, mas conseguimos – cada uma ao seu tempo – a usar a tal palavra.
Arte e política
Segundo Gal, sua visão de governo ideal para o povo seria o humanista. Nas últimas eleições, posicionou-se publicamente em seu show. Diferente de diversos artistas que se omitiram, ela não se calou.
Maternidade
A maternidade chegou com a maturidade dos 60 anos e Gal sempre falava com muito carinho do filho Gabriel, que, segundo ela, a fez mais feliz. “Ser mãe é ser transgressora”, disse ela. Nada mais verdadeiro do que esta reflexão.
O poder de Gal
Em uma de suas últimas postagens nas redes sociais, Gal postou uma arte em que ela é retratada como uma heroína de quadrinhos e perguntou: “me digam aí, qual é o meu poder?”
Seu poder é ser eterna, Gal!
Notas de Rodapé
[1] Gal disse que “toda Maria da Graça na Bahia tem o apelido de Gau. O que Guilherme Araujo fez foi trocar o U pelo L, fazendo uma brincadeira ao dizer que seria uma abreviação para “Guilherme Araujo Limitada”. Ela gostou, pela sonoridade e pelo fato de que a escrita seria uma gíria para “garota”, em inglês. Caetano é que não gostava muito, por ser abreviação de general, ainda mais que o Brasil vivia a longa ditadura militar, com o General Costa e Silva (gal. Costa) no comando.
[2] “Alegria, alegria”, de Caetano, é de 1967. Gal participava das reuniões do Tropicalismo e ouvia coisas diferentes do que ela conhecia, algo que lhe era muito caro.