Aos que se mantiveram minimamente informados acerca dos principais acontecimentos da semana passada, provavelmente experimentaram uma sensação análoga à minha, que poderia ser sintetizada na conhecida expressão “parem o mundo que eu quero descer”.
Já no domingo (09.10), bolsonaro reafirmava suas inclinações e aspirações golpistas, manifestando seu desejo (inconstitucional) de ampliar o rol de Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – expediente idêntico à tragédia instrumentalizada pelo Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, só que, desta vez, repetida como farsa. Entende-se muito bem o porquê. Uma vez garantida a maioria no Legislativo, e tratando do STF como um prolongamento de uma de suas várias casas, o plano é preenchê-lo com um número maior de aliados, reajustando a correlação de forças em benefício próprio, à moda anacrônica do l’État c’est moi.
É bem verdade que os destemperos e arroubos golpistas não são fato novo, mas seguem sendo estarrecedores, obrigando o presidenciável a moderar o discurso para não arruinar de vez suas chances de reeleição. Entrementes, a emenda costuma sair pior que o soneto, pois o descompromisso com a democracia é intrínseco ao bolsonarismo, razão pela qual bolsonaro afirmou que a discussão poderia ficar para o após-eleições, e até poderia ser descartada, caso o Supremo baixasse “um pouco a temperatura”[i]. Leia-se: “discutam e debatam o quanto quiserem, desde que, ao final, façam aquilo que eu quero; do contrário, eu mudo as regras do jogo”. Um pequeno detalhe: Hamilton Mourão (Republicanos), vice-presidente e recém-eleito Senador (2.6 milhões de votos) não apenas já havia manifestado o mesmo interesse (07.10), como também ofereceu um passo a passo para resolver a questão[ii].
Mas não parou por aí. No mesmo dia 9 de outubro, Damares Alves (Republicanos), recentemente eleita Senadora (644.904 votos) pelo Distrito Federal, protagonizou um novo escândalo. Aos que têm dificuldade de localizá-la politicamente, refiro-me àquela senhora que, do alto de uma goiabeira, às vias de tirar a própria vida, teria sido salva por Jesus Cristo em pessoa; que atribuiu os desastres orquestrados e operacionalizados pelo governo federal – e até a pandemia da COVID-19 – a intervenções demoníacas; que se dispôs a firmar um dress code para meninos e meninas, de modo a salvá-los da “ideologia de gênero”; que, em plena pandemia, trabalhou ativamente contra a vacinação, especialmente a infantil. Com um histórico desses, surpreender o público é um desafio constante, mas isso não tem se mostrado problemático para uma mente tão exótica.
Afinal, irracionalismo despudorado, reacionarismo (invariavelmente fascistoide) e mentiras deliberadas converteram-se em modus operandi do governo federal. Tanto é assim que, no pronunciamento de 9 de outubro, quando participava de um culto religioso em Goiânia, a ex-Ministra, sentindo-se totalmente livre e desimpedida para falar aos seus fiéis, narrou uma história macabra[iii], com vistas a exemplificar e realçar as peculiaridades místicas de bolsonaro – a seu juízo, homem de uma “compreensão espiritual” inimaginável.
A Ministra da Mulher informou aos fiéis que crianças de três a quatro anos de idade estariam sendo sistematicamente sequestradas e traficadas desde a fronteira (inexistente, diga-se de pronto) da Ilha “do” Marajó com o Suriname e a “Guiania” (sic). E mais: as criancinhas teriam seus dentes extraídos e estariam sendo submetidas a uma dieta pastosa, com a finalidade última de inibir eventuais reações à prática do estupro. Damares declara que ela e o presidente já tinham tomado conhecimento do fato há tempos, além de estarem munidos de imagens para comprová-lo. Nesse sentido, das duas uma: se for mentira, a Ministra incorreu em crime eleitoral; se for verdade, incorreram, ela e bolsonaro, em crime de prevaricação. Por que não acionaram o Ministério Público Federal? Por que não entraram em contato com as Embaixadas do Suriname e da Guiana? Por que não vieram a público, ao tempo em que tomaram conhecimento dos fatos, para denunciar o ocorrido? Onde estão as imagens supostamente recolhidas? Indagada, a senadora eleita voltou atrás em sua palavra, dizendo ter ouvido a história “nas ruas”. Maluquice? Não nos apressemos em nossas conclusões: há método nessa loucura[iv].
Damares assume o tom típico dos líderes de seitas obscurantistas, buscando inteirar seus seguidores sobre os perigos da vida mundana. O pecado mora ao lado e, uma vez descoberto, haveria de ser combatido. Foi assim que um homem, deparando-se com a maldade que assola o mundo, teria saído em socorro dos indefesos, e contra ele se mobilizaram as forças do mal. O protagonista seria bolsonaro; as forças do mal seriam a imprensa, o STF e o Congresso. A ficção assume contornos de guerra santa, e seu desfecho estaria nas mãos dos fiéis, que deveriam tomar a decisão correta, para evitar que as criancinhas caíssem nas garras de Moloque[v]. Quem é Moloque? Desnecessário dizer…
Note-se, portanto, que a ficção reproduzida por Damares tem um objetivo prático-político: instaurar o pânico moral entre os fiéis, fazendo-os crer que seu messias está em perigo, e que deles depende o futuro do país. E mais: todos aqueles que se levantarem contra as aspirações desse nobre homem são, eles mesmos, servos de Moloque, fomentadores do pecado e inimigos da Igreja. O circo está armado e o golpe está mais do que anunciado.
Todavia, não deixa de ser curioso que os bolsonaristas, cuja imaginação sempre se vê voltada para a perversidade sexual, tenham, eles mesmos, tantos acusados de crimes sexuais entre seus quadros – e isto sem mencionar alguns apoiadores esdrúxulos, que dispensam maiores comentários. Resta claro que o moralismo de goela anda, de mãos dadas, com as mais escabrosas depravações, mas o remate de tanta repugnância ficaria para o término da semana.
Aos 15 de outubro, no último sábado, bolsonaro se arvorou a relatar um evento ocorrido em 2021, por ocasião de um de seus passeios de motocicleta. Desta vez ele não teria sido assaltado e perdido sua pistola; teria encontrado duas meninas, de uns 14 ou 15 anos de idade, que se lhe afiguraram “bonitas”, “arrumadinhas”, “meio parecidas”, e foi então que “pintou um clima” (!). Ele pediu para entrar em sua casa, lá encontrando outras 15 ou 20 meninas, todas venezuelanas, que se arrumavam, em um sábado de manhã, donde concluiu tratar-se de casa de prostituição. E o que fez a esse respeito? Nada. Absolutamente nada.
Ocorre que não era uma casa de prostituição, e sim uma ação social para refugiados, como ficou esclarecido por uma das venezuelanas entrevistadas. Mas deixemos de lado a estranha linha de raciocínio do presidenciável, que, por assim dizer, jamais foi a faca mais afiada do faqueiro. Deixemos de lado também o seu preconceito, pois essa é, desde sempre, a especialidade da casa. Pintou um clima?! Entre um idoso e duas adolescentes?! Em que contexto tal expressão poderia ter uma conotação distinta daquela que causou repulsa aos que assistiram ao vídeo[vi]? Este é bolsonaro, o messias de Damares, o autodeclarado defensor da moral e dos bons costumes, que rotula seus inimigos de destruidores da família e perversores de crianças. Para bom entendedor, meia palavra basta.
No fim das contas, fomos surpreendidos pela decisão de Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – e, portanto, seguindo a lógica de Damares, um dos servos do tinhoso. O Ministro determinou que o Partido dos Trabalhadores (PT) retirasse o vídeo de sua campanha, pois as alusões à pedofilia eram, em seu entendimento, completamente descabidas. Não se sabe muito bem que outras alusões seriam possíveis, a julgar pelo conteúdo da fala de bolsonaro; porém uma coisa é certa: o melhor juízo ficará a cargo das urnas, pois o presidenciável está com os dias contados.
Notas de rodapé
[i] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/bolsonaro-diz-que-pode-descartar-aumento-de-ministros-do-stf-se-corte-baixar-temperatura.shtml
[ii] “Não é só uma questão de aumentar o número de cadeiras na Suprema Corte. A gente tem que trabalhar em cima do que são as decisões monocráticas, temos que trabalhar em cima do que vem a ser um mandato para os mandatários da Suprema Corte. Eu acho que não pode ser algo até os 75 anos. Ou 10, 12 anos.” In: https://www.poder360.com.br/eleicoes/mourao-defende-mais-ministros-no-stf-e-limites-na-atuacao/
[iii] Eis a transcrição da fala, na íntegra: “Na Ilha do Marajó, todo mundo pergunta por que bolsonaro ‘tá’ fazendo o maior programa de desenvolvimento regional na Ilha do Marajó. Porque ele tem uma compreensão espiritual que vocês não têm nem ideia. Fomos ‘pra’ Ilha do Marajó. E lá nós descobrimos que nossas crianças ‘tavam’ sendo traficadas por lá. Marajó faz fronteira com o mundo, Suriname, ‘Guiania’ (sic)… eu vou contar uma coisa ‘pra’ vocês, que agora eu posso falar: nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, com quatro anos, três anos, que, quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados, ‘pra’ elas não morderem na hora do sexo oral. Essa nação que a gente ainda têm, irmãos. Nós descobrimos que essas crianças, elas comem comida pastosa, ‘pro’ intestino ficar livre para a hora do sexo anal. Bolsonaro disse ‘nós vamos atrás de todas elas’, e o inferno se levantou contra esse homem. A guerra contra Bolsonaro, que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem: não é uma guerra política, é uma guerra espiritual. E eu ‘tô’ falando com a minha igreja, e eu tenho um manto constitucional ‘pra’ me expressar dentro da minha igreja; têm coisas que eu não posso falar lá fora, mas aqui eu tenho a liberdade constitucional de manifestar a minha fé. Continuei, continuei abrindo as gavetas do Ministério e descobri, irmãos, o horror: eu descobri que nos últimos 7 anos, no Brasil, explodiu o estupro de recém-nascidos. Nós temos imagem lá no Ministério, irmãos, de crianças de 8 dias, sendo estupradas; nós descobrimos que um vídeo de estupro de crianças custa entre 50 e 100 mil reais; tem um crime organizado envolvido nisso; tem sangue; tem morte; tem sacrifício, e bolsonaro se levantou contra todas essas potestades. A gente agora, como Igreja, a gente tem aqui uma decisão ‘pra’ tomar: a gente vai continuar essa luta, e tirar essas crianças da mão de Moloque, ou nós vamos entregar essa nação?”
[iv] Hamlet, II act. In: The complete works of William Shakespeare. New York: Barnes & Noble, 1994, p. 683.
[v] Confira-se, na Bíblia Sagrada, Levítico, 20.
[vi] https://www.youtube.com/watch?v=WxeBKaQSBFw&ab_channel=UOL