Algumas poucas linhas sobre o "campeão da tolerância"...

Nascido a 1694, François-Marie Arouet foi o quarto dos cinco filhos de uma família pertencente à elite aristocrática do reinado de Luís XIV (1638-1715), o Rei Sol. O jovem fez suas primeiras letras em colégio inaciano, mas é de seu pai, François Arouet (1647-1722) que adquire o gosto pela literatura, passando a idolatrar Molière (1622-1673), Racine (1639-1699) e Corneille (1606-1684). Entrementes, a despeito de ser um membro ativo na cultura literária francesa, o pai ficou profundamente desapontado quando o filho, apaixonado pela palavra escrita, decidiu-se pela carreira literária. A bem da verdade, ele até cursaria Direito, e chegaria a atuar como secretário de um diplomata local, mas essa não era a sua verdadeira vocação; seus horizontes eram demasiadamente amplos, extrapolando em muito os limites estreitos da jurisprudência, como ficaria provado.

Em 1718, publica Oedipe, seu debut, em cuja capa se lê, pela primeira vez e para sempre, o pseudônimo-mestre do Iluminismo: Voltaire. Aclamado e prestigiado desde o princípio, trava contato com Lorde Bolingbroke (1678-1751), um aristocrata inglês exilado na França, com quem aprende sobre as obras de Locke (1632-1704) e demais newtonianos ingleses – o dernier cri daqueles tempos.

Em Voltaire, o erotismo e os ímpetos libertinos, invariavelmente ilícitos aos olhos da censura real, são nítidos desde a primeira hora, porém não se tratava de mero recurso estilístico ou preferência temática: compunham os traços mais marcantes de sua personalidade hedônica, eram a expressão mais vibrante de seu modo de ser e de estar no mundo. Custou-lhe caro ser como era. Em 1726, uma acusação de difamação pelo Duque de Rohan (1638-1760) força o autor ao exílio, transferindo-se para a Inglaterra, de onde renascerá como philosophe. De fato, é em solo britânico que ele descobre, nas páginas de As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745), a possibilidade de combinar escrita literária e crítica política. E é encantador pensar que um livro como este, que embalou a infância de múltiplas gerações anteriores à nossa, tenha, ao seu tempo, inspirado a maturação intelectual de personagens da estatura de um Voltaire.

Em 1729, nosso protagonista regressaria a Paris, mas em apuros financeiros, uma vez que tinha sido banido da corte de Versailles. Quanto às questões econômicas, tudo foi sanado mediante o recebimento da herança de seu pai, e ele jamais voltaria a se preocupar com problemas dessa natureza, o que lhe garantiu total autonomia artística e intelectual, sem a necessidade de pleitear patrocínios a quem quer que fosse. Quanto ao banimento, Voltaire era, de fato, um grande escritor, do tipo que não passa despercebido, e rapidamente tornaria a ser lido e representado, recuperando o antigo status social.

Já aludi à incorporação voltairiana do clássico de Jonathan Swift, mas é justo mencionar a leitura que fez de um conterrâneo seu, Montesquieu (1689-1755) – mais especificamente, do Montesquieu de Cartas Persas (1721) –, se bem que com uma nota de inovação: para além de seus dois predecessores, acha-se, em Lettres philosophiques (1734), uma postura caracteristicamente jornalística. O autor descrevia a sociedade britânica ao público francês, destacando os múltiplos aspectos da vida social nacional. Voltaire firmara uma oposição entre Newton (1643-1727) e Descartes (1596-1650), de modo a estabelecer um conjunto de distinções fundamentais entre as filosofias inglesa e francesa. Para ele, Bacon (1561-1626), Locke e Newton haviam estabelecido as bases filosóficas de uma nova era, em que a razão se afirmava empírica e indutivamente, contra as ilusões racionalistas e inatistas de um Descartes e de um Malebranche (1638-1715). Em seus Eleménts de la philosophie de Newton (1738, 1745), encontra-se a epítome do projeto voltairiano: um ataque frontal às aspirações filosóficas de tipo cartesiano.

Pouco tempo depois, em 1749, o philosophe aceita o convite de Frederico, O Grande (1712-1786), para integrar a corte prussiana. Durou pouco. Tinha de durar pouco. O espírito libertino e a postura terminantemente crítica não caiam lá muito bem naquele ambiente, e tão logo quanto em 1752, após uma rixa com Malpertuis (1698-1759), o filósofo se vê obrigado a deixar a Prússia. Desta feita, não pela França, e sim por Genebra, e, em seguida, por Ferney (hoje, Ferney-Voltaire), uma comuna situada entre França e Suíça, onde compra um château e fixa residência até o fim de seus dias.

Membro aguerrido do “partido da humanidade”, o filósofo ataca sistematicamente todas as formas de fanatismo e superstição, protagonizadas, na estrutura social, tanto pelo clero quanto pela aristocracia. Tratava-se de uma ruptura convicta e confessa com o Ancien Régime. “Écrasez l’infame!”, bradava Voltaire, conjugando filosofia, crítica social e reformismo político.

Voltaire não estava sozinho, ou melhor, não permaneceu sozinho por muito tempo. Associou-se aos organizadores da Encyclopédie (1751), Diderot (1713-1784) e d’Alembert (1717-1783), e passou a contribuir com uma série de verbetes que começariam a ser publicados no quinto volume (1755) da obra. Bem entendido, o projeto não estava unificado em torno de uma filosofia compartilhada por todos os seus membros, mas antes por um compromisso incomplacente com a filosofia mesma, contra o obscurantismo de um regime que, como tudo que é sólido, desmanchava no ar…

Daí para frente, Voltaire se tornaria sinônimo de filosofia, exemplo de racionalidade e tolerância. Em uma brevíssima viagem a Paris, em 1778, com toda a fragilidade física de um então octogenário, o mestre é recepcionado como um herói nacional, merecedor de uma estátua em sua homenagem. Vem a falecer algumas semanas depois, mas ciente de que se havia eternizado na memória de seus concidadãos.

Engana-se, contudo, quem lhe atribua radicalidade política ou teórica. Mais acertado e condizente é identificar-lhe como um intelectual moderado: não aderiu integralmente nem ao determinismo dos materialistas, nem ao espiritualismo voluntarista cristão. Para ele, os seres humanos não são máquinas determinísticas, logo haveria livre-arbítrio; mas, por outro lado, são também seres naturais, regidos por leis inexoráveis, de sorte que o agir ético estaria ancorado em um “eu” que possuía, de modo imanente, a capacidade racional. Naquilo que concerne à política, Voltaire foi um monarquista liberal, favorável, sim, a reformas, mas descrente do ideário republicano e democrata.

A frase que jamais disse – “Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” – constitui, ironicamente, uma síntese bastante razoável de sua filosofia política, o que faz dele um dos pais do libertarismo contemporâneo e, quem sabe, o avô de uns quantos humoristas sem talento.

Evidentemente que nem todos estão contemplados pelo projeto voltairiano. Em uma página sombria, um tanto esquecida pelos comentadores e intérpretes, o philosophe aborda a questão racial, assumindo uma posição claramente poligênica: raças distintas corresponderiam a espécies distintas, e essa seria a razão pela qual os negros seriam incapazes de filosofar (!)[i]:

“Se o entendimento deles [dos negros] não é de uma natureza distinta da nossa, é, no mínimo, bastante inferior. Eles não são capazes de nenhuma grande aplicação ou associação de ideias, e não parecem formados nem para as vantagens nem para os abusos da filosofia.”

Incapazes de autoconhecimento e de autocontrole, já que mentalmente deformados, não estariam habilitados para orientarem suas ações com a devida correção. E é por esse motivo que Voltaire, o crítico do clero, seguiu defendendo a pertinência sociocultural da religião natural, que desempenharia o importante papel de conservação da ordem social.

São páginas medonhas; não há como negá-lo. Todavia, penso que a crítica à miopia de um Voltaire não deveria ser conducente a uma posição anti-iluminista ou antimoderna. Trata-se, pelo avesso, de submeter o Iluminismo ao crivo crítico, levando-o às suas últimas consequências emancipatórias, sem quaisquer concessões à cretinice pós-moderna. Quando Voltaire escreveu o que escreveu, foi justamente por ter traído o próprio projeto intelectual, reproduzindo tolices pseudocientíficas que não tardariam a ser fulminadas pela razão.

Notas de rodapé

[i] VOLTAIRE. The negro. In: The works of Voltaire: a contemporary version, vol. xxxix. Trad.: The Rt. Hon. John Morley. London: E. R. Dumont, 1901, p. 241.

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