Alessandro Baratta: uma crítica em dois movimentos (pt. 2)

Não existe ideologia da defesa social – ao menos, não nos termos defendidos por Alessandro Baratta.

Passadas duas décadas desde o falecimento de Alessandro Baratta, seu pensamento segue exercendo uma profunda influência entre os criminólogos críticos latino-americanos. Fazendo um balanço de sua obra, se nos fosse dado escolher, entre as suas principais ideias, a que desfruta de maior predileção, o conceito de ideologia da defesa social seria um forte concorrente, sobretudo por encarnar, com maior vivacidade, sua extraordinária radicalidade política em matéria criminológica.

O mito da falsa consciência

Notadamente, qualquer discussão sobre a ideologia da defesa social deve estar precedida de uma análise do conceito geral de ideologia, cuja reconhecida polissemia[i] é muito mais devida à pluralidade de autores que, ocupando-se do tema, procuraram desenvolver um conceito próprio[ii], do que às imprecisões semânticas de um autor, em particular. Lamentavelmente, Baratta não se enquadra em nenhum dos dois casos, talvez porque, ao tempo em que trabalhava na sua Criminologia Crítica, não dispunha de um conhecimento aprofundado da teoria marxiana e das diferentes tradições marxistas[iii]. Optou, portanto, pelo caminho mais fácil, restringindo-se a reproduzir uma definição que encontrou pré-montada[iv]:

“O termo ‘ideologia’ em um significado positivo (conforme o uso de Karl Mannheim) se refere aos ideias ou programas de ação; em um significado negativo (conforme o uso de Marx), se refere à falsa consciência, que legitima instituições sociais atribuindo-lhes funções ideais diversas das realmente exercidas. Usamos o termo, aqui e no prosseguimento do curso, neste segundo sentido, com referência, em particular, à ideologia penalista, identificada como ideologia da defesa social.”

É certo que, para Karl Marx (1818-1883), à diferença do entendimento de Karl Mannheim (1893-1947), o conceito de ideologia tem um caráter explicitamente negativo, mas daí a dizer-se que ideologia é, para o autor de O Capital (1867), uma falsa consciência, é algo simplesmente insustentável, sem a mais mínima correspondência com as fontes primárias. No que concerne ao conceito em questão, tudo indica que Baratta tenha se baseado exclusivamente em fontes secundárias – expediente pouco recomendável, ainda mais em se tratando de conceito tão elementar –, acabando por reproduzir um grosseiro equívoco.

A responsabilidade originária é de ninguém menos que Friedrich Engels (1820-1895). Em carta remetida a Franz Mehring (1846-1919), aos 14 de julho de 1893, uma década após a morte de Marx, lê-se o seguinte[v]:

“Ideologia é um processo realizado pelo chamado pensador conscientemente, é verdade, mas com uma falsa consciência. As reais forças motivadoras que o impelem permanecem desconhecidas a ele; do contrário, simplesmente não seria um processo ideológico. Por isso ele imagina forças motivadoras falsas ou aparentes.”

A competência e a idoneidade de Engels são insofismáveis, claro está, mas uma postura verdadeiramente materialista e iconoclasta não deve se curvar ao argumento de autoridade: tem de submeter todos os ditos e escritos ao crivo crítico, não importando quem seja o protagonista. Se consultarmos a MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), a descomunal coleção de obras completas de Marx e Engels, constataremos que Marx jamais empregou a expressão “falsa consciência” para designar seu conceito de ideologia, e mesmo Engels talvez só tenha se valido dela em uma única carta, que, a despeito de todos os méritos gramscianos, não constitui o meio mais fértil para a elaboração teórica.

Em alguma medida, são compreensíveis e até perdoáveis os numerosos equívocos cometidos pelas primeiras gerações de marxistas[vi], completamente alheias a obras seminais, como é o caso d’A Ideologia Alemã[vii] (1845-1846), que só viria à lume na década de 1930. Agora, venhamos e convenhamos: décadas após a publicação, certas falhas e imprecisões não mais se justificam, de sorte que os ímpetos de benevolência, outrora legítimos e oportunos, vão dando margem à cumplicidade com o erro ou à pura e simples displicência teórica.

No caso de Baratta, que julgava estar bem acompanhado, antes tivesse permanecido só. Não se sabe ao certo de que fonte proveio o equívoco, e nem é necessário investigá-lo, pois isso não tem a menor importância: uma breve inspeção do Dicionário do Pensamento Marxista[viii] (1983), editado por Tom Bottomore (1920-1992), já teria bastado como antídoto.

Ressalte-se, contudo, que muitos outros incorreram no mesmo erro. Para citar apenas dois exemplos ilustres: Norberto Bobbio (1909-2004), um destacado erudito, reiterou a posição engelsiana em seu famoso dicionário[ix]; mas o hors-concours foi, sem sombra de dúvida, John Plamenatz (1912-1975), para quem “Marx frequentemente chamava ideologia de ‘falsa consciência’”[x] – poucas vezes se acha, no meio acadêmico profissional, um exemplo tão impecável de alguém que afirma, de modo tão categórico, em livro inteiramente dedicado ao tema, um disparate tão extravagante, ao ponto de não se saber, ao certo, se se trata de erro primário ou mera falsificação teórica.

Retomemos, portanto, o texto marxiano. O que o próprio Marx tem a nos dizer sobre o seu conceito?[xi]

“Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.”

De acordo com a interpretação de um arguto especialista no opus marxiano, a ideologia – explicitamente negativa, como já sinalizei –, apesar de suas reelaborações posteriores, sempre esteve regida por duas componentes centrais: de um lado, pelo seu traço idealista, o que explica a percepção invertida do real; de outro, pela distribuição desigual de recursos e poder, nas sociedades burguesas[xii]. Daí se entende o porquê da escolha pela análise concreta de situações concretas, da inclinação para o exame das relações de produção da vida material, que, efetivamente, são engendradoras de ideologias. E mais: é evidente que nenhuma classe, nem mesmo o proletariado, estaria livre de produzir ideologias[xiii], mas a conditio sine qua non para uma ideologia é servir aos interesses da classe dominante[xiv].

Isto posto, o que precisa ficar suficientemente claro é que, além de Marx jamais ter identificado a ideologia com uma pretensa “falsa consciência”, seu emprego seria absolutamente inadequado: “(…) a ideologia não é uma questão de falsidade lógica ou empírica, mas da maneira superficial ou enganosa pela qual a verdade é afirmada.”[xv] De resto, por mais que a ideologia compreenda uma forma de mistificação da realidade, ela é inintencional[xvi], não havendo que confundir a figura do ideólogo com a de um mentiroso ou um embusteiro contumaz.

Ideologia da defesa social: uma ideia fora de lugar

Para Alessandro Baratta, a ideologia da defesa social se manifestaria pelo encadeamento de uma série de princípios fundamentais, assumidos pela criminologia tradicional, e funcionando “como nó teórico e político fundamental do sistema científico”[xvii]. Uma centena de páginas adiante, ele oferece um resumo da problemática[xviii]:

“O sistema penal de controle do desvio revela, assim como todo o direito burguês, a contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos, que, nesse caso, se manifesta em relação às chances de serem definidos e controlados como desviantes. Em relação a este setor do direito a ideologia jurídica da igualdade é ainda mais radicada na opinião pública, e também na classe operária, do que ocorre com outros setores do direito.”

Sendo assim, por trás de toda a retórica de tratamento penal igualitário em relação ao conjunto da sociedade, que puniria, observando a legislação penal, todo aquele que porventura praticasse um delito, a realidade nua e crua seria bem diferente, revelando-se a seletividade intrínseca ao direito penal, instrumentalizado para a criminalização sistemática dos setores mais vulneráveis das sociedades de classes. Contudo, a tomada do conceito marxiano de ideologia, seja na acepção equivocada de Baratta, seja naquela proposta pelo próprio Marx, não parece dar conta do recado.

Um ideólogo não é, afinal, um embusteiro: Cesare Beccaria (1738-1794), por exemplo, defendeu honestamente o caráter intimidatório da pena privativa de liberdade; Cesare Lombroso (1835-1909) acreditava piamente haver descoberto as causas do comportamento criminoso. Poder-se-ia dizer o mesmo de juristas e criminólogos atuando em finais do século XX e neste princípio de século XXI? Estariam eles prisioneiros de uma falsa consciência ou de uma percepção invertida da realidade, mesmo quando todos os dados empíricos confirmam a seletividade do sistema penal?

Lembremo-nos que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu que o sistema prisional brasileiro conforma um “estado de coisas inconstitucional”[xix]. Palestrando na Universidade King’s College, em Londres, o então presidente do STF, Joaquim Barbosa, foi ainda mais enfático, comparando as prisões brasileiras ao inferno[xx]. E isto para não falar no então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que afirmou preferir a morte a cumprir pena em nosso sistema prisional[xxi]. De fato, o modo pelo qual procedem as autoridades do sistema de justiça criminal não parece indicativo de percepção invertida do real: estão perfeitamente cientes da barbárie, mas escolhem “lavar as mãos”.

Bem entendido, não se quer aqui decretar o fim da ideologia, mas sim o exaurimento dessa concepção de ideologia, incapaz de dar conta da realidade concreta. Por conseguinte, qualquer um que queira retomar o pensamento de Baratta, com vistas a reelaborá-lo, deve resgatar o debate relativo ao conceito de ideologia. Um excelente ponto de partida, que inclusive já estava disponível ao tempo da Criminologia Crítica, é o encantador trabalho de Göran TherbornThe Ideology of Power and the Power of Ideology[xxii] (1980).

No mais, fica a homenagem ao grande pensador, cujas lições embalaram a criminologia crítica e forjaram brilhantes gerações de intelectuais que, comprometidas com a luta pela emancipação humana, jamais deixaram de denunciar os usos e abusos do poder punitivo contra os setores mais vulneráveis das sociedades de classes. Muito embora os méritos da sua Criminologia Crítica sejam incontestáveis, é sempre válido lembrar a divertida apreciação de Borges, para quem “o conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço”[xxiii].

Notas de rodapé

[i] LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 9ª. Ed. Trad.: Juarez Guimarães e Suzanne Léwy. São Paulo: Cortez, 2009, p. 10.

[ii] O leitor interessado em história conceitual já dispõe de uma série de materiais introdutórios, em língua portuguesa, sobre os diferentes conceitos de ideologia. Cf.: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Trad.: Luís Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: UNESP, 1997; KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da ideologia. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

[iii] Em uma breve síntese autobiográfica, o próprio Baratta esclareceu o processo contraditório que antecedeu a feitura do livro. Foram três as tentativas de alcançar um marco teórico que lhe parecesse adequado à complexidade do projeto. De início, optou-se por uma posição estritamente funcionalista, que logo se mostraria insuficiente; em seguida, aderiu-se à linha teórico-metodológica do interacionismo simbólico, mais instigante e consideravelmente mais consistente, mas, ainda assim, também insatisfatória. Foi só então que, auxiliado por Gerlinda Smaus e Fritz Sack – autores virtualmente desconhecidos entre nós –, Baratta logrou reconstruir sua pesquisa sob novas bases, decididamente marxistas. Cf.: BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Compilación in memorian. Colección Memoria Criminológica, n. 1., Montevidéu: B de F, 2004, pp. 398-402.

[iv] (Grifos meus) BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª. Ed. Trad.: Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2014, p. 240.

[v] (Grifos meus) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Selected correspondence. 2ª. Ed. Moscow: Progress Publishers, 1965, p. 459

[vi] Pense-se, por exemplo, em Antonio Gramsci (1891-1937), Antonio Labriola (1843-1904), Clara Zetkin (1857-1933), Evguiéni Pachukanis (1891-1937), José Carlos Mariátegui (1894-1930), Karl Liebknecht (1871-1919), Lenin (1870-1924), Rosa Luxemburgo (1871-1919), Plekhanov (1856-1918) e tantos outros…

[vii] Cf.: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Trad.: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2012.

[viii] Lê-se, no verbete relativo ao tema: “Nesse sentido, a definição, tão frequente, de ideologia como falsa consciência não é adequada na medida em que não especifica o tipo de distorção criticada, abrindo dessa forma caminho a uma confusão de ideologia com todos os tipos de erro.” In: BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. 2ª. Ed. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 272.

[ix] Cf.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de política, vol. 1. 7ª. Ed. Trad.: Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cascais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, pp. 585-597.

[x] (Grifos meus) PLAMENATZ, John. Ideology. London: Palgrave Macmillan, 1971, p. 23.

[xi] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia… op. cit., p. 94.

[xii] MCLELLAN, David. Ideology. 2ª. Ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995, p. 9.

[xiii] Ibid., pp. 11-12.

[xiv] “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. (…) As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.” In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia… op. cit., p. 47.

[xv] MCLELLAN, David. Op. cit., p. 16.

[xvi] NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. 1ª. Ed. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 163.

[xvii] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª. Ed. Trad.: Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2013, p. 41.

[xviii] Ibid., p. 164.

[xix] http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm

[xx] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140129_barbosa_prisoes_londres_lgb

[xxi] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2012/11/13/interna-brasil,333605/jose-eduardo-cardozo-diz-que-prefere-a-morte-a-prisoes-brasileiras.shtml

[xxii] THERBORN, Göran. The ideology of power and the power of ideology. London: Verso, 1980.

[xxiii] BORGES, Jorge Luis. Discussão. Trad.: Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 104.

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