Prisioneiro n.º 9.653: abolicionista, socialista e crítico da criminologia

Uma breve homenagem a um herói esquecido

Desde o dia em que foi transferido para a Penitenciária Federal de Atlanta, o prisioneiro n.º 9.653 esteve no centro das atenções de seus companheiros de cárcere. De porte esbelto e modos refinados, era inevitável que se sobressaísse em um ambiente tão miserável; mas o verdadeiro motivo de tamanho alvoroço residia no fato de tratar-se de personalidade de renome nacional, cuja fama o precedia. Era, afinal, um importante líder sindical, figura de proa do Partido Socialista da América – legenda pela qual já havia, inclusive, disputado quatro eleições presidenciais consecutivas, granjeando votações expressivas.

A bem da verdade, não se poderia dizer que fosse um completo noviço em matéria de encarceramento. Em virtude de sua militância sindical nas greves[1] de 1894 e 1895, já havia sido apenado em duas ocasiões distintas, primeiro na Cook County Jail, depois na McHenry County Jail. Todavia, em 1918, a repressão penal atingiu-lhe com toda a sua violência: o fundador da American Railway Union[2] (ARU), então com 63 anos de idade incompletos, foi acusado de traição e condenado a dez anos de prisão.

Na “Terra da Liberdade”, era tempo de “caça às bruxas”. Malgrado tivesse sido reeleito sob o mote “ele nos manteve fora da guerra”[3], o segundo mandato do presidente Woodrow Wilson (1856-1924) foi assinalado pelo ingresso dos Estados Unidos no que um biólogo racista havia batizado[4], no calor da hora e com notável perspicácia, de Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Alterada a conjuntura, o presidente Wilson trabalhou ativamente pela promulgação da Lei de Espionagem[5] (1917), devidamente instrumentalizada para criminalizar aqueles que se levantassem contra a guerra, opondo-se à conscrição – especialmente quando fossem lideranças sindicalistas, socialistas, anarquistas ou comunistas. Entre os principais alvos da nova legislação, destacaram-se Victor Berger (1860-1929), Emma Goldman (1869-1940), Alexander Berkman (1870-1936) e nosso protagonista, o prisioneiro n.º 9.653, também conhecido como Eugene Debs (1855-1926).

Décadas antes de alguém se atrever a falar em criminologia crítica, quando nem mesmo os teóricos do etiquetamento haviam despontado na cena intelectual e o que se tinha de mais avançado era a pesquisa praticada pelos intelectuais da Escola Sociológica de Chicago[6], Eugene Debs revelou-se uma das mentes mais reluzentes na luta contra o sistema penal. Sempre dotado daquela solidariedade militante que distingue os grandes homens, logrou transformar sua tragédia pessoal em crítica criminológica, cuja radicalidade emancipatória já era declarada, em juízo, antes mesmo de sua condenação[7]:

Excelência, anos atrás, reconheci meu parentesco com todos os seres humanos e decidi que não era nem um pouco melhor do que o pior na Terra. Eu disse então, e digo agora, que enquanto houver uma classe inferior, pertencerei a ela; enquanto houver um elemento criminoso, estarei nele; enquanto houver uma alma na prisão, não serei livre.

Não obstante estivesse plenamente consciente de que poderia encerrar seus dias atrás das grades, seu espírito não esmoreceu: de pena em punho e vocalizando os interesses materiais de seus companheiros de cárcere, passou a multiplicar artigos de crítica ao sistema prisional, descrito e pormenorizado com riqueza de detalhes, ademais de inseri-lo no contexto mais abrangente de crítica ao modo de produção capitalista. Tais artigos, acrescidos de outros tantos inéditos, foram postumamente coligidos em seu comovente Walls and Bars[8] (1927). Feita a leitura, elenquemos apenas seis teses que, apesar de quase centenárias[9], resistiram bem ao avançar dos anos.

1. Inexiste uma essência criminosa

Já naquele tempo, a melodia enfadonha e fantasiosa dos criminólogos profissionais era um soporífero para audições mais apegadas à realidade. Naturalistas contumazes, esses altivos especialistas percorreram presídios e manicômios, examinando a população local, na busca obsessiva pelas causas do comportamento desviante, supostamente conformadoras de uma mentalidade ou psicologia criminosa. Entrementes[10]:

A maioria dos homens e mulheres que seriam acusados pelos altivos criminologistas de possuírem uma psicologia criminosa são simplesmente vítimas de alguma forma de injustiça social, e quando a causa disso é determinada e removida, e as vítimas recebem tratamento humano, em termos de amor e auxílio, sua ‘psicologia criminosa’ imediatamente desaparece.

2. Inexiste um estereótipo criminoso

Circunscritos à imediatidade do fenômeno criminal, os especialistas gastaram rios de tinta e quilômetros de filme, desenhando e fotografando aquilo que acreditavam representar o estereótipo dos diferentes tipos de criminosos. Como não poderia deixar de ser, tamanha exaltação logo extrapolou os espaços laboratoriais, ao que expressões como “semblante criminoso” e “cara de bandido” foram incorporadas ao vocabulário do dia a dia[11]:

Eu ouvi pessoas se referirem ao ‘semblante criminoso’. Eu nunca vi um. Por detrás das grades, qualquer homem ou mulher se parece com um criminoso.

E caso a identificação não ocorra imediatamente, basta que se espere alguns meses – a dieta asquerosa, a proliferação de doenças e a própria submissão ao isolamento darão conta de moldar o estereótipo do criminalizado[12]:

É extremamente difícil dizer se os homens que vão para a prisão são arruinados mais rapidamente fisicamente, pela comida podre que lhes é servida, ou moral e espiritualmente, pelo tratamento duro e amargo que recebem. Seja qual for o método de degradação que venha primeiro, no inevitável processo prisional de deterioração humana, pode-se dizer, sem medo de contradição, que são males gêmeos a reduzir homens a caricaturas.

3. A prisão como instituição essencialmente capitalista

Dentre todas as espécies animais existentes, somente o homo sapiens constrói jaulas para aprisionar seus semelhantes[13]. É evidente que a prisão precede o capitalismo, mas, com a gênese, desenvolvimento e consolidação desse novo modo de produção, a instituição prisional foi remodelada, passando a constituir “(…) uma parte inerente e inseparável do sistema social e econômico sob o qual a massa da humanidade é impiedosamente explorada e mantida em um estado empobrecido”[14].

Nesse sentido, há uma íntima relação entre as asilos de mendicidade (poorhouses) e as prisões: enquanto os primeiros servem de abrigo àqueles que permanecem dóceis e submissos, a despeito de toda exploração que sofrem, as últimas são o destino dos que se rebelam contra as condições injustas e exploratórias que lhes são impostas. Seja qual for o caso, pela docilidade ou pela rebeldia, ambos acabarão repousando eternamente no mesmo lugar: na vala comum dos indigentes[15].

4. Capitalismo como criminalização da pobreza

Em não havendo uma essência criminosa, é evidente que qualquer um de nós está sujeito a processos de criminalização – “seja por infringir a lei, seja por defendê-la”[16]. Todavia, observando-se a massa da população carcerária, ninguém poderá negar que há uma estreita correlação entre pobreza e encarceramento[17]: salvo raríssimas exceções, só os pobres vão presos. Em síntese: “(…) A pobreza é o crime penalizado pela sociedade, que é a responsável pelo crime que penaliza.”

Note-se que o autor fala em correlação, e não em causalidade. Para além de uma ou outra derrapada teórica, Debs tem mais interesse nos processos de criminalização secundária do que na etiologia ou mecânica do delito. Isto fica evidente nas diversas passagens em que ele caracteriza os condenados como “supostamente culpados”, elencando os fatores que, a seu juízo, determinam que a quase totalidade dos presos seja pertencente aos setores mais vulneráveis da sociedade de classes.

5. Antipunitivismo

De quando em vez, ocorre de um burguês ser criminalizado. Trata-se de uma atipia tão inusitada, que desperta a atenção de todos – exceção que apenas confirma a regra de criminalização da pobreza. Afinal, para que um multimilionário seja encarcerado, o mais provável é que tenha “entrado em conflito com interesses financeiros ainda mais poderosos”[18]. Ainda assim, os recursos políticos e econômicos de que dispõe bastarão para que seu tempo de prisão seja curto, ou, ao menos, bem mais curto do que o estipulado pela sentença condenatória.

Debs não encara este fato pela via do revanchismo. Muito pelo contrário. Seus compromissos éticos com o abolicionismo penal são de uma impressionante coerência e honestidade intelectuais[19]:

Que não se entenda que me traria qualquer satisfação ver um homem rico mantido na prisão. Não acredito que uma prisão seja um lugar adequado para qualquer ser humano, rico ou pobre, e eu não confinaria nem o meu pior inimigo em suas jaulas cruéis.

6. A prisão como uma incubadora de crime

Infelizmente, a sociedade tem muito mais interesse em centros de entretenimento do que nas condições do sistema carcerário[20]. Consequentemente, as informações sobre as condições materiais a que os presos estão submetidos raramente ultrapassam os muros das penitenciárias.

De sua experiência pessoal e do contato que travou com seus companheiros de cárcere, Debs concluiu que a prisão é uma incubadora de crime, cujas regras internas são inteiramente voltadas à repressão dos internos[21], sem qualquer esperança de ressocialização. Ninguém passa impunemente por uma prisão, mas a dinâmica interna é especialmente perniciosa aos meus jovens. E tudo parece confluir para a estigmatização dos condenados[22]:

É dado como certo que todos eles são cruéis e incorrigíveis. A própria condenação é evidência prima facie de sua inata depravação, e eles não apenas são marcados para o ostracismo perpétuo, como devem ser perseguidos, caçados e acossados de volta à prisão, como se o crime deles consistisse em serem devolvidos à sociedade.

Conclusão

Curiosamente, Eugene Debs sequer é mencionado nas principais fontes bibliográficas de interesse criminológico que pude compulsar – e, sinceramente, nem me animo a especular sobre o motivo da omissão.

Aos que, tanto quanto eu, se encantaram e se emocionaram com a personagem, limito-me a informar que, em 1920, o prisioneiro n.º 9.653 triunfou sobre a repressão. Em um episódio inédito na história estadunidense, Debs concorreu, de dentro do presídio, às eleições presidenciais. E apesar de não ter vencido o pleito, acompanhou a derrocada de Woodrow Wilson, que sequer teve sua candidatura aprovada na convenção partidária. No Natal de 1921, o presidente Warren Harding (1865-1923) comutou a pena do prisioneiro n.º 9.653, que finalmente pôde retornar às ruas como Eugene Debs, um campeão da liberdade.

Natal de 1921: primeira foto de Eugene Debs após deixar a Penitenciária Federal de Atlanta

Ele jamais se esqueceu do que viveu e aprendeu na Penitenciária Federal de Atlanta. Faleceu aos 20 de outubro de 1926, sem jamais abdicar daquilo que, em seu vocabulário, se tornara uma verdade insofismável: Socialismo e prisão são termos antagônicos.

Notas de rodapé

[1] A Depressão de 1893 detonou uma série de greves nos Estados Unidos, cuja maior, iniciada na Pullman Company em 1894, foi capitaneada pelos trabalhadores ferroviários, tomando proporções nacionais. Ocorre que a categoria não apenas era indigentemente remunerada, como também desempenhava, àquela época, um dos trabalhos mais perigosos do país: “(…) mais de dois mil trabalhadores ferroviários eram mortos a cada ano, e trinta mil eram feridos”. In: ZINN, Howard. A people’s history of the United States. New York: Harper Collins, 2015, p. 278.

[2] Para um breve relato acerca do sindicato, cf.: HILLQUIT, Morris. History of socialism in the United States. New York: Funk & Wagnalls Company, 1910, pp. 284 e seg.

[3] No original: “He kept us out of the war”. Cf.: COOPER JR., John Milton. Woodrow Wilson: a biography. New York: Alfred A. Knopf, 2009, p. 342.

[4] Segundo consta, em artigo publicado aos 20 de setembro de 1914, no Indianapolis Star, Ernest Haeckel (1834-1919) teria afirmado: “Não há dúvidas de que o curso e o caráter da temida ‘guerra europeia’ (…) se tornará a primeira guerra mundial, no sentido pleno da palavra”. In: SHAPIRO, Fred R. (ed.). The Yale book of quotations. New Haven: Yale University Press, 2006, p. 329.

[5] Por mais que o diploma original tenha sido emendado, seu núcleo-duro foi mantido intacto, ao que serviu de fundamento legislativo para os processos criminais movidos contra Julian Assange (1971-) e Edward Snowden (1983-).

[6] Para um excelente estudo, cf.: EUFRASIO, Mário A. Estrutura urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940). 2ª. Ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

[7] ZINN, op. cit., p. 368.

[8] DEBS, Eugene V. Walls and bars. Chicago: Socialist Party, 1927.

[9] Do texto original, o leitor colherá tanto críticas de cunho criminológico quanto propostas político-criminais. Visto que o espaço de que disponho é limitado, optei por dedicar-me às primeiras – a meu juízo, a parte mais instigante do livro – e deixar estas últimas para uma outra oportunidade.

[10] DEBS, op. cit., pp. 149-150.

[11] Ibid., p. 33.

[12] Ibid., pp. 72-73.

[13] Ibid., 32.

[14] Ibid., p. 23.

[15] Ibid., p. 180.

[16] Ibid., p. 31.

[17] Idem.

[18] Ibid., p. 139.

[19] Ibid., p. 142.

[20] Ibid., p. 45.

[21] Ibid., p. 135.

[22] Ibid., p. 146.

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