Dar início ao estudo do método marxiano está longe de ser uma tarefa simples, pois, ao contrário daquilo que se verifica em Durkheim[1] (1858-1917) e Weber[2] (1864-1920), Marx (1818-1883) jamais publicou algo inteiramente dedicado ao seu método. Uma vez reconhecido esse obstáculo, é natural que os estudantes interessados busquem o aconselhamento de seus professores, requerendo orientações pedagógicas. O problema é que, não raro, um outro obstáculo se interpõe entre o aluno entusiasmado e o objeto de sua curiosidade: alguns professores parecem ter fixado morada naquela ilha imaginária, que imortalizou Thomas Morus (1478-1535), e acabam por sugerir, com irremediável ingenuidade, a leitura sistemática e rigorosa dos três livros de O Capital.
Sucede que um número nada insignificante de docentes parece crer que a orientação acadêmica se restringe a indicações bibliográficas, que até podem ser qualitativamente relevantes, mas, dada a ausência de balizamento e ponderação, só fazem desencorajar a esmagadora maioria de seus alunos. Com efeito, uma orientação adequada deve estimular o estudante, animar-lhe o espírito crítico, fazê-lo apaixonar-se pelo processo de aprendizado e habituá-lo ao convívio com contratempos, dificuldades e dúvidas. Parte-se, em suma, de um programa de estudos exequível, que vai sendo ampliado e aprofundado aos poucos, à medida do desenvolvimento intelectual do indivíduo, e não de uma pilha gigantesca e supostamente insondável de obras clássicas.
No que tange ao método marxiano, o mais apropriado é começar pelos seus pressupostos ontológicos – por um deles, em especial: o da não coincidência entre aparência e essência. A razão para tal escolha é facilmente justificável, pois é esse o pressuposto que o leitor encontrará, de imediato, ao deitar os olhos sobre as primeiras linhas do primeiro livro de O Capital[3]:
“A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar.”
Atente-se para o verbo-núcleo. Sempre que Marx emprega o verbo “aparecer” em uma frase, ele está aludindo à forma manifesta do objeto, à sua aparência empírico-sensível. Por conseguinte, ao nos dizer que aquela riqueza aparece como uma “enorme coleção de mercadorias”, ele se refere estritamente à sua aparência fenomênica, que não se confunde com a essência do objeto: vemos apenas mercadorias prontas e acabadas, e ignoramos que tais objetos não surgiram do nada, posto que tiveram de ser produzidos, segundo a disciplina de determinadas relações de produção. Há, implicitamente, uma crítica ao idealismo subjetivo de Kant (1724-1804), para quem o mundo não seria outra coisa senão uma “soma de fenômenos”[4].
Quando falamos em aparências, nos referimos a propriedades sensoriais ou fenomenais, àquilo que é percebido por seres sencientes. Todavia, como nos lembra a sabedoria popular, “as aparências enganam”. E não só: enganam, ocultam e mistificam. Pense-se, a título de exemplo, em um sujeito que, em um dia de folga, decide sentar-se à beira da praia e admirar a paisagem. Seu olhar contempla o movimento do Sol, ao longo de algumas horas, enquanto ele mesmo segue imóvel. Ao confiar imediatamente na aparência empírico-sensível do fenômeno, o sujeito hipotético estaria pronto para concluir que não é a Terra que se move ao redor do Sol, e sim o exato oposto. Resultado: a aparência geocêntrica estaria ocultando a realidade heliocêntrica.
No reino das aparências, percebemos cores, sons, sabores, odores e texturas, mas isso não nos diz absolutamente nada sobre comprimentos de onda, pesos atômicos, composições químicas e órbitas planetárias. Não é que a percepção subjetiva seja irrelevante, mas apenas que ela não se confunde com o conhecimento objetivo da realidade[5].
Há quem discorde – sempre os há! Boaventura de Sousa Santos (1940-), o professor lusitano tão festejado nos nossos departamentos jurídicos, é caso exemplar dos que, a pretexto de discutir questões de importância epistemológica, sempre acabam produzindo textos que primam pela ignorância e pelo irracionalismo. Em Pela mão de Alice (1995), sem qualquer fundamento racional, a distinção entre aparência e realidade é posta em suspeição[6].
Entrementes, a proposição está em frontal desacordo não apenas com Marx, mas com qualquer intelectual que tenha o mínimo de educação científica. Afinal, “(…) toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente” [7]. Ao tratar aparência e realidade como domínios coincidentes, recai-se na velha cantilena de que todo conhecimento é para si, porquanto intrinsecamente subjetivo. Se fosse assim, qual seria o protocolo para lidarmos com algumas distorções cognitivas elementares, como, por exemplo, ilusões e alucinações?
Para conhecer o mundo, é imprescindível que se ultrapasse a aparência imediata dos fenômenos. Do contrário, todo o produto do intelecto se resumiria a descrições subjetivas daquilo que se observa. E se a realidade se vê reduzida a uma suma de subjetivismos, quais seriam os critérios objetivos para discordar das posições alheias? Ironicamente, sob o véu de um pretenso pluralismo democrático, o que se oculta é a interdição definitiva do debate racional, expresso na cultura irracionalista e amplamente difundida do “vale tudo”.
Notas de rodapé
[1] Cf.: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad.: Walter Solon. São Paulo: Edipro, 2012.
[2] Cf.: WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, 2 vols. 4ª. Ed. Trad.: Regis Barbosa e Karen Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012.
[3] (Grifo meu) MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113.
[4] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª. Ed. Trad.: Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015, p. 521.
[5] Para uma excelente síntese, confira-se: RUSSELL, Bertrand. The problems of philosophy. Radford: Wilder Publications, 2008, pp. 6-11.
[6] SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2010, p. 331.
[7] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista. 1ª. Ed. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 880.