A hora é agora: com Lula e contra bolsonaro

Contra a besta-fera bolsonarista, não há espaço para hesitação!

Há uns vários anos – tantos que nem me atreveria a calcular –, lembro-me de ter lido, de um brasilianista, um juízo trágico sobre a história do Brasil: em linhas gerais, o historiador sustentava que o principal traço de nosso desenvolvimento histórico havia sido, desde o princípio, o de uma longa tradição autoritária, intermeada por alguns breves suspiros democráticos. Não me recordo de nada além disso – nem seu nome, nem o título do trabalho –, e pode até ser que os termos utilizados não tenham sido exatamente esses, ma se non è vero, è ben trovato.

Os últimos anos têm sido de muita dor e sofrimento, especialmente para as vítimas de sempre: os que se acham na base da estrutura produtiva, obrigados a vender sua força de trabalha por um salário paupérrimo, e os que sequer têm um emprego para chamar de seu. No palco da desgraça, protagonizado pelo antagonista do país, uma vez mais atestou-se o óbvio ululante: sua cabeça era mesmo tão oca quanto seu coração. À medida que os brasileiros iam morrendo aos montes, atingindo a marca das centenas de milhares, o irracionalismo antivacina e cloroquinólatra seguia em plena marcha, dando causa ao agravamento do quadro; aos sobreviventes, que sequer podiam velar seus mortos, nem uma palavra de consolo, apenas troça e escárnio.

Está certo que, em se tratando de conceder poder a um infradotado, as expectativas são sempre as piores, mas não aconteceu o que temíamos; aconteceu algo bem pior: no fundo do poço, havia um alçapão. Não obstante, um contingente mais que significativo da população brasileira (43,2%) teima em erguer monumentos a um falso ídolo, revigorando a máxima de Boileau (1636-1711): “Um tolo encontra sempre outro mais tolo que o admira”[i].

Apesar de algumas boas notícias, o resultado do primeiro turno é desolador: dos 27 senadores eleitos, 16 são aliados de bolsonaro[ii], que também logrou constituir, na Câmara Federal, a maior bancada dos últimos 24 anos, elegendo 23 novos mandatos, totalizando 99 deputados. É bem provável que bolsonaro saia derrotado no 30 de outubro, mas não o bolsonarismo, que só se fortaleceu. Rumando em direção à barbárie, nos vemos confrontados com o prognóstico aterrador de Burckhardt (1818-1897)[iii]:

“De há muito sei que o mundo está caminhando em direção à alternativa entre a completa democracia e o despotismo absoluto e ilegítimo; mas este último não mais será exercido pelas dinastias, demasiado fracas, mas por destacamentos militares, alegadamente republicanos.”

Sendo realistas, a hipótese de uma democracia perfeita não está mais no horizonte – ao menos, não no horizonte que se pode enxergar. Contudo, o despotismo absoluto e ilegítimo parece estar na ordem do dia, reavivado por correntes militaristas e francamente fascistóides que muitos estão permitindo que se instale como uma espécie de mentalidade nacional. O que está em jogo, portanto, é o mínimo civilizatório; um suspiro democrático em um Estado sufocado pela mais profunda miséria física e moral.

Confio que os partidos de esquerda tomarão a decisão correta, e apoiarão o ex-presidente Lula no segundo turno; quero crer que o MDB de Simone Tebet e o PDT de Ciro Gomes, a despeito da retórica circense que empregaram no decorrer da campanha, seguirão o mesmo caminho. Não há espaço para hesitação: omitir-se é optar pela barbárie, é fazer pouco caso do sofrimento de milhões, é compactuar com o genocídio e com a desumanização das relações de sociabilidade, é jogar com o futuro dos outros em benefício próprio, é menoscabar da solidariedade em favor do egocentrismo; é, em suma, aliança objetiva com o bolsonarismo e tudo o que ele representa.

Ponhamos de lado os bordões românticos e levemos a conjuntura a sério. Não é mais o caso de bradar “venceremos!”, pois a verdade é que já perdemos. O que nos cabe é a boa e velha política de redução de danos, opondo resistência à barbárie, pois disso depende o futuro. Hoje, as palavras do saudoso Professor Carlos Nelson Coutinho[iv] (1943-2012) se converteram em bolhas de sabão: a democracia não se mostra como um valor universal, mas deve ser encarada como um valor instrumental dos que têm menos contra os que têm medo, pois é do medo que se alimenta a besta-fera bolsonarista. Tenhamos a coragem necessária para enfrentá-la.

Notas de rodapé

[i] “Un sot trouve toujours um plus sot qui l’admire.” In: Boileau. L’art poétique. Paris: Librairie Hachette, 1946, p. 25.

[ii] Sigo aqui a recomendação do Professor João Cézar de Castro Rocha, pois há nomes tão minúsculos que não merecem sequer a cortesia formal de uma letra maiúscula.

[iii] DRU, Alexander (ed.). The letters of Jacob Burckhardt. New York: Pantheon Books, 1955, p. 207.

[iv] COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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