Na semana passada, Caio Patricio de Almeida compartilhou uma pertinente reflexão sobre uma terrível faceta da política criminal brasileira[1]: a prática recorrente de execuções sumárias, evidenciada por várias chacinas recentes, mesmo em um país onde a pena de morte foi abolida para civis. Citando casos das barbáries cometidas no Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo[2], ele destaca como a violência policial não é marcada por casos excepcionais, mas sim uma característica intrínseca dos órgãos de persecução, respaldada pela falta de controles externos efetivos e pela resistência em promover reformas institucionais.
Embora o artigo mereça ser lido na sua integralidade, um excerto me chamou a atenção especialmente, no qual Almeida cita algumas das estratégicas utilizadas para a “justificação” desse tipo de prática[3]:
“Divulgam-se montagens de crianças atingidas por disparos policiais portando armas, emprega-se o significante ‘bandido’ como se fosse uma autorização para que agentes policiais decidam quem vive e quem morre, antecedentes criminais obtidos após as operações são divulgados para justificar o injustificável”.
Sempre que me vejo diante de uma situação tão absurda quanto essa, uma pergunta me vem à cabeça: como é que algo dessa natureza foi possível? Mais do que uma reflexão filosófica, trata-se de uma indagação material e concreta, acerca do caminho causal que permitiu a realização desses eventos; trata-se, portanto, de um questionamento sobre a etiologia dessas práticas. E, embora o próprio texto de Almeida já indique alguns frutíferos caminhos de explicação para tais práticas sistemáticas, há um ponto que foge do escopo de sua análise: o fundamento tecnológico para limitarmos o poder do Estado.
Na forma como é constituído contemporaneamente, o direito funciona como uma tecnologia de controle social[4]: é por meio desse sistema que estabelecemos uma série de normas sociais, bem como as consequências decorrentes de eventuais violações dessas normas. Essas regras não são direcionadas apenas aos sujeitos, mas também às instituições, estabelecendo parâmetros para a operação não apenas do próprio sistema legal, mas também do próprio Estado; é dizer: trata-se de um instrumento central para a manutenção do status quo.
No âmbito processual penal, a operação do direito depende de instrumentos específicos, denominados provas, para que possa exercer sua pretensão de controle social; há, portanto, uma expectativa (possivelmente implícita) acerca da existência de instrumentos eficazes para o conhecimento da realidade sobre a qual quer-se decidir. Como juízes dependem de provas para decidir, presumem que tais instrumentos são aptos a essa tarefa – ainda que outros, mais qualificados, apontem para sua ineficácia[5].
Ocorre que, para além da expectativa de seus usuários, tecnologias detém alguns poderes e não outros; e a existência desses poderes – desses potenciais de interferência na realidade – estão diretamente ligadas à sua estrutura interna[6]. Sua eficácia, como instrumento tecnológico social, está diretamente ligada às características da realidade sobre a qual se aplica; e, em tratando-se da difícil tarefa de conhecer, suas características tendem a ser frequentemente superestimadas, assumindo uma condição ilusória e mistificadora[7]. Por mais que desejemos que uma tecnologia funcione de uma maneira específica, se ela não estiver organizada de forma a poder gozar das condições necessárias para a realização desse objetivo particular, ela não irá funcionar.
O que podemos retirar do no trecho destacado de Almeida é, em minha opinião, precisamente isso: os mecanismos intra e extra processuais que permitem a manipulação narrativa de um determinado evento, favorecendo sistematicamente práticas como aquelas descritas em seu artigo – tudo isso à revelia do real.
Muito embora possamos defender a existência de múltiplas formas de conhecer, a organização social contemporânea relega ao campo da ciência o exercício mais apurado dessa tarefa. Trata-se de um esforço gigantesco, que requer consideráveis investimentos de tempo, espaço e recursos materiais. Essa não é uma imposição arbitrária, entretanto, pois decorre da complexidade inerente ao real: ao contrário do que pretendem alguns relativistas, se não conseguimos compreender e/ou comunicar o real, isso é um problema nosso, como espécie, e não interfere em nada na constituição objetiva – ontológica – desse real. Todo exercício de conhecimento é necessariamente falível, uma das razões pelas quais trata-se de tarefa hercúlea: todo o esforço do mundo não consegue garantir sua acurácia para além de qualquer questionamento.
O direito, em contraste, funciona em um domínio bem mais estrito. Sua utilidade não decorre de sua capacidade de conhecer a realidade, já que sua operação depende de um recorte tão brutal da história, com uma finalidade especificamente instrumental na prestação judicial. Cientistas, que mesmo assim estão frequentemente equivocados, dedicam vidas para compreenderem os mais básicos aspectos do real; juristas, movidos pela necessidade de dar respostas sobre o que é, equivocam-se ao achar que basta chamar algo de “conhecimento” para que conheçam sobre este algo. Seu exercício não se dá com o intuito de conhecer a realidade, apenas dependendo de um mínimo de indícios acerca deste ou daquele fato penalmente relevante para, uma vez estabelecidos, serem instrumentalizados em uma ferramenta de dispensa administrativa de punições. Como tecnologia, o direito depende de respostas rápidas e eficazes, algo incompatível com a dificuldade inerente ao exercício do conhecer.
Esta urgência, inevitavelmente, leva a um conhecimento mais superficial dos mecanismos e motivações que podem ter desencadeado a prática de uma ação potencialmente criminosa. O processo penal, em sua pressa de entregar respostas, não tem o tempo, o espaço ou os recursos para adentrar nas intricadas camadas da vida de um indivíduo; não possuem, é dizer, as condições necessárias para conhecer as determinações (sociais, psicológicas e mesmo biológicas) que culminaram em uma ação potencialmente criminosa. O peso do real é incompatível com a pressa do jurídico.
É assustador considerar que, mesmo que consiga chegar ao gabinete de um juiz, uma ação penal tratando das chacinas destacadas por Almeida será absolutamente desprovida de contexto histórico e social; isso porque o direito não tem condições de apresentá-la. Sua configuração tecnológica é incapaz de dar conta do real. No decurso do exercício de qualquer pretensão punitiva – desde os policiais até os juízes – o que se opera não é um processo de conhecimento, mas uma necessária manipulação da realidade: em vez de construírem alguma forma de registro histórico, esses profissionais são obrigados pelos critérios de imputação a “interpretar” os indícios existentes no processo para chegarem a uma conclusão; e, nesse processo, acabam por alterar tanto a realidade a sua frente que produzem não história, mas, no máximo, estórias. Por estarem vinculados à imposição instrumental de qualquer processo penal, esse esforço depende de um recorte tão visceral da realidade que seu produto se torna absolutamente incapaz de representá-la de maneira fiel.
Para além da mera constatação dessa incompatibilidade, o problema persiste: nos interessa, como sociedade, dispor de instrumentos capazes de normatizar condutas e responsabilizar violações dessas normas. O que devemos fazer, entretanto, não é ignorar os conflitos do modelo ideal de funcionamento do sistema jurídico contra a realidade; devemos conceber como, acima de tudo, essa é uma tecnologia falha e incapaz de dar conta da complexidade do real. E como fazemos isso? Se a superação das contradições que embasam as falhas da tecnologia jurídica não está no horizonte imediato, torna-se fundamental a criação de instrumentos para (tentar) controlar sua utilização.
É precisamente pela sua fragilidade que o exercício do direito depende de limitações. Em uma sociedade fundada no marco liberal, essa a fundamentação que garante ao direito penal uma única função concebível: limitar o poder do Estado na sua manifestação mais brutal[8]. Se essa limitação se opera por meio de garantias internas, no âmbito processual (inclusive de eventuais acusados por tais chacinas), ela evidentemente também inclui, em um âmbito externo, a limitação do que policiais podem fazer em nome do Estado – e matar os outros, para além das situações de justificação ou exculpação, certamente não pode ser admitido. Afinal de contas, o fundamento para a eventual punição de agentes estatais é o mesmo que garante os direitos daqueles que são acusados.
E é aqui que reside o cerne da questão: a necessidade vital de ver o direito penal não como um mero instrumento de punição, mas como um meio de limitar o poder do Estado. O direito penal deve servir para manter em xeque o poder do Estado, garantindo que os agentes estatais, inclusive a polícia, operem dentro de limites claramente definidos. E não nos enganemos: promotores e juízes que, na ânsia pela punição, violam direitos, contribuem da mesma maneira para a vulgarização e ineficácia das funções que atribuem ao direito.
Reconhecer o direito penal como limitação ao poder do Estado depende da compreensão de que, para além das nossas expectativas, o direito é uma tecnologia extremamente frágil e problemática. Ele opera não com base em nossos desejos e anseios ideais, mas sim com base nas capacidades concretas que sua estruturação permite. Se desejamos, portanto, aprimorar o desempenho do sistema jurídico, devemos desenvolvê-lo não a partir de uma visão utópica, mas considerando as circunstâncias materiais em que vivemos. Em uma sociedade assolada por desigualdade, exploração e violência, não é surpreendente que uma abordagem que negligencia todas essas realidades falhe em atender às nossas expectativas minimamente otimistas.
Notas de rodapé
[1] ALMEIDA, Caio Patricio de. Vendetta, vingança e veredito. Introcrim. Disponível em: https://www.introcrim.com.br/vendetta-vinganca-e-veredito/. Acesso em: 14 ago. 2023.
[2] COSTA, Flávio VM. PT e bolsonarismo são cúmplices de chacinas na Bahia, Rio e São Paulo. The Intercept Brasil. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/08/05/pt-e-bolsonarismo-sao-cumplices-de-chacinas-na-bahia-rio-e-sao-paulo/. Acesso em: 14 ago. 2023.
[3] ALMEIDA, op.cit.
[4] KRUG, Ricardo Alves. A crise como crime: o problema da responsabilização individual como solução para contradições estruturais. Dissertação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.
[5] OLIVEIRA, Ivan. Nota técnica sobre a suspensão da resolução CFP 012/2011 – atuação da(o) psicóloga(o) no âmbito do sistema prisional | Transparência do CRP 06. Conselho Regional de Psicologia da 06ª Região (SP). Disponível em: https://transparencia.cfp.org.br/crp06/legislacao/nota-tecnica-sobre-a-suspensao-da-resolucao-cfp-012-2011-atuacao-dao-psicologao-no-ambito-do-sistema-prisional/. Acesso em: 14 ago. 2023.
[6] LAWSON, Clive. Technology, technological determinism and the transformational model of social activity. In: LAWSON, Clive; LATSIS, John; MARTINS, Nuno (Orgs.). Contributions to social ontology. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2007.
[7] KRUG, Ricardo Alves. Por onde começo minha pesquisa? Introcrim. Disponível em: https://www.introcrim.com.br/por-onde-comeco-minha-pesquisa-metodologia/. Acesso em: 14 ago. 2023.
[8] TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Fundamentos de Teoria do Delito. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 37.