Recife, 1860. Uma foto, tirada em um estúdio fotográfico, nos mostra um menino branco e uma mulher negra que, provavelmente, é sua mãe preta. Com esta imagem, a diretora Consuelo Lins abre seu documentário Babás, trazendo junto a seguinte reflexão: “Quase todo o Brasil cabe nesta foto”.
Recife, 2020. Com receio do contágio pela COVID-19, Mirtes de Souza, uma mulher negra, empregada doméstica, levou seu filho de 5 anos, Miguel, junto com ela para o trabalho. Pensou que ele assim estaria seguro. Desceu para levar o cachorro na rua. A patroa, Sarí Corte Real, que estava no apartamento fazendo as unhas com uma manicure, assegurou que ficaria de olho no garoto, que entra em um elevador sozinho – em razão da negligência desta mulher – cai do 9º andar do prédio e morre.
Duas mulheres, separadas por séculos. Sobre a primeira, sequer sabemos seu nome. A realidade daquela mulher negra do Brasil oitocentista permanece atual. Aquelas que a sucederam figuram como base da pirâmide social. Mulheres negras carregam todo o peso de uma sociedade racista e patriarcal nas costas. Por isso, em 1937, a escritora Zora Neale Hurston disse que “a mulher negra é a mula do mundo”.
Os papeis de gênero continuam a separar o que seria “função das mulheres” e “função dos homens”. O trabalho realizado em casa é quase que em sua totalidade realizado por mulheres. Aquelas que realizam a tarefa em sua própria casa “não fazem mais do que sua obrigação”, afinal, cuidar do lar em uma sociedade patriarcal seria função atribuída às mulheres. Na verdade, Silvia Federici traz o alerta: “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.
Quando há contratação de um profissional para realizar o trabalho, da mesma forma as mulheres em sua maioria exercem o trabalho – agora (mal) remunerado. As trabalhadoras domésticas precisaram aguardar longos anos para finalmente terem – ao menos no papel – seus direitos e garantias assegurados pela Constituição. Quando ainda tramitava a PEC, a burguesia já chiava, reclamando do absurdo: “agora teremos que pagar todos os direitos trabalhistas, ninguém mais vai contratar empregadas”. Era uma prévia do quão podre a sociedade consegue chegar, pois ouviríamos tempos depois com Bolsonaro, que “os trabalhadores devem escolher entre mais direitos ou trabalho”.
O trabalho doméstico nada mais é do que a manutenção de um sistema de exploração. Certamente você conhece alguém que diz: “esta daqui é a X, está conosco há 40 anos, é praticamente da família”. Sempre me assusto, pois penso naquela mulher, na sua jornada mais do que exaustiva de trabalho. Seu quarto, abafado, minúsculo, em que cabe apenas uma cama e um pequeno armário para que ela guarde alguns pertences, sequer tem uma janela. Fica colado à cozinha, assim, a qualquer chamado, ela está sempre perto para atender, seja a hora que for. E é assim que as novelas retratam. Lembra da personagem Zilda, vivida por Thalma de Freitas, em Laços de Família?
Muitas vezes elas acumulam funções e não são devidamente pagas: arrumam a casa e cuidam das crianças da patroa – a sinhá moderna, que também foi cuidada por ela quando criança – com todo carinho. “Ela, simplesmente, é a mãe. A branca, na verdade, é a outra”[1].
A expressão “como se fosse da família” há tempos é usada no Brasil. Dona Ines, por exemplo, aos 8 anos já era empregada doméstica e narra: “diziam que eu era como filha, porque meu pai tinha me dado para eles. La eu limpava, lavava e cozinhava, sem receber nada porque era como filha”[2].
Juliana Teixeira[3] bem analisa a contradição que é o “como se fosse da família”:
Ao mesmo tempo que a relação podia (e pode) envolver um clima de afetividade e aproximidade, mantinha as divisões hierárquicas relativas aos acessos aos espaços e às práticas dos patrões. (…) traduzir essas relações de trabalho em afetividade mascara relações de poder e desigualdades.
Enquanto elas vivem para servir àquela família, a vida passa. E a sua família? Passam mais tempo com aquelas crianças do que com as suas. Não acompanham a ida à escola, não colocam para dormir, não contam histórias. Não porque não querem, mas porque este sistema de perpetuação de exploração as impede de fazê-lo. Como bem disse Elisa Lucinda[4], tem gente que não reparou que tem, nos dias de hoje, uma escravizada em casa.
Há uma normalização de que este lugar, o de servir, deve ser ocupado por mulheres negras. A arte retrata isso, como já disse, em suas novelas. Quantas mulheres negras já viveram empregadas domésticas nas tramas? Zezé Motta[5] bem reflete sobre isso: “nada contra fazer empregada doméstica, o problema é que eu fazia sempre o mesmo personagem”. Sobre este fato, eu me lembro das inúmeras críticas que Tais Araujo recebeu ao ser a primeira Helena negra em uma novela de Manoel Carlos. Será que teria as mesmas críticas se ela interpretasse a empregada de “Dona Helena”?
Nesta semana, foi ao ar o episódio “Mancha”, da série Falas Femininas, histórias impossíveis. Resumidamente, narra a relação entre Laura, vivida por Isabel Teixeira e a empregada doméstica Mayara, vivida por Luellem de Castro. Mayara estava em seu último dia de trabalho, já que começaria seus estudos em uma faculdade. O roteiro, assinado por três mulheres negras, colocou na personagem Mayara o sobrenome de uma grande mulher: Laudelina de Campos Melo.
Laudelina nasceu em 1904 e foi pioneira na luta pelo direito das trabalhadoras domésticas. Assim como muitas mulheres negras naquele pós-abolição, começou a trabalhar ainda criança, aos 7 anos. Neste período, a população brasileira passava por um processo de racialização e não apenas o Código Penal tinha como função a de controlar os corpos da população negra, códigos de conduta assim também o faziam, colocando-as “no seu devido lugar”: o de servir[6].
Muitas mulheres negras ainda pertencem a “gerações de empregadas domésticas”, como bem relatam Juliana Teixeira e Tais de Sant’anna Machado em suas obras. No episódio citado, a Laura tenta convencer Mayara a continuar trabalhando em sua casa. Não quer se ver privada dos serviços daquela moça, que há tanto tempo lhe serve tão bem. Pouco importam os seus desejos, sonhos e a vontade de ter outros empregos.
Para que este ciclo que se mantem desde o Brasil escravista de exploração de mulheres negras, é preciso interesse em mudar as coisas que, por vezes, são muito cômodas para a dita elite. E aqui cabe a reflexão: no seu dia-a-dia no momento de você agir, você é de fato antirracista ou fica apenas na teoria?
Notas de Rodapé
[1] GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[2] MACHADO, Tais de Sant’anna. Um pé na cozinha. São Paulo: Fósforo, 2023. p. 123.
[3] TEIXEIRA, Juliana. Trabalho doméstico. São Paulo: Jandaíra, 2021. p. 41.
[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w5UBFd0wZ94. Acesso em 08 mar. 2023.
[5] Disponível em: https://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2022/03/09/zeze-motta-sobre-inicio-da-carreira-nada-contra-fazer-empregada-domestica-o-problema-e-que-eu-fazia-sempre-o-mesmo-personagem.ghtml. Acesso em 08 mar. 2023.
[6] ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.