O que dizem a academia, a mídia e os mortos?

Eugênio Raúl Zaffaroni – o maior criminalista da América Latina e ex-presidente da Suprema Corte da Argentina – publicou, a partir de 2011, uma série de artigos no diário argentino. Posteriormente, esses artigos foram reunidos no livro “A questão criminal”, com interessantes ilustrações do talentoso cartunista Miguel Repiso. A publicação foi traduzida para o português por Sérgio Lamarão e publicada pela nossa queridíssima Editora Revan (sempre ela!) em 2013.

O livro não tem sumário, mas pode-se notar uma sequência histórica na organização dos artigos e uma coerência interna na abordagem dos temas. O primeiro capítulo tem como título “A academia, os meios de comunicação e os mortos”

Já de início – só pelo título – se tem ideia do porque Zaffaroni é o estudioso mais inquietante e inquietador das ciências criminais (no mundo!). O título já nos leva a indagar da(s) ligação(ões) entre o saber produzido pelas ciências criminais e as mortes que de alguma forma resultam desse saber (seja preparando-as, seja justificando-as), embaladas pelos meios de comunicação. A tríade “saber-mídia-mortos” forma a simbiose do poder punitivo: o poder punitivo precisa de um saber que lhe dê sustentação; esse saber é reproduzido pela mídia, formando consensos; da atividade das funções concretas desse saber/poder punitivo resultam mortos; as mortes, por sua vez, precisam ser justificadas; invocam-se para tanto os consensos produzidos pela mídia… e assim caminham os discursos justificadores de massacres.

Como nós – juristas – podemos aceitar e reproduzir teorias justificadoras de genocídios? Como podemos opor Welzel x Mezger como se a polêmica que os envolve(ram) fosse uma questão dogmática mais ou menos superada, sem nos ater ao número de mortos que estão por detrás de suas elucubrações teóricas? Como podemos continuar aplicando o direito penal (fascista), como se fosse uma ciência neutra, provocando o super-encarceramento de pobres e as suas mortes?

Algum desavisado pode ler com espanto essas palavras e indagações. Afinal, o que tem o direito penal a ver com os genocídios praticados no curso histórico recente?

Bem, vamos ao livro! Ele está dividido em 57 itens e percorre a teia desses três eixos: saber penal, mídia e mortos. O que se tem no livro é um labirinto interessante de ser percorrido, que pode ser lido de modo a extrair como o autor explica a questão criminal, compreendendo-a segundo os discursos da academia e da mídia, e como estas formam uma teia produtora de mortos.

Para começar pela academia, a primeira coisa que devemos saber é a quem perguntar. Quem se ocupa da questão criminal? O primeiro movimento será olhar para a Faculdade de Direito. Ali estão e dali são os penalistas. Sabem direito penal. Mas nem de longe basta saber direito penal para poder opinar com fundamento científico acerca da questão criminal. É necessário distinguir dois âmbitos do conhecimento: o do penalista e o do criminólogo, ou seja, o direito penal e a criminologia.

O direito penal se ocupa de trabalhar a legislação penal, interpretar as leis penais com o método da dogmática jurídica. A tarefa dos penalistas é fundamental para que as decisões judiciais sejam conforme uma ordem mais ou menos racional, ou seja, republicana e algo previsível. Os penalistas constroem um conceito de delito que se chama teoria geral do delito, uma ordem prioritária conceitual para estabelecer frente a uma conduta se ela é ou não delitiva com vistas a uma sentença. Para isso, diz-se que o delito é uma conduta típica, antijurídica e culpável. O delito dos penalistas é uma abstração que se constrói com um objetivo bem determinado, que é chegar a uma sentença racional ou pelo menos razoável. Na realidade social, porém, esse delito não existe, porque no plano do real existem violações, homicídios, fraudes, roubos etc. O penalista se ocupa da lei, não da realidade.

Para analisar o que dizem os meios de comunicação, devemos perceber que os discursos têm uma estrutura e conteúdo. O que permanece do discurso inquisitorial não é o conteúdo, e sim o programa.

Desde a Inquisição até os hoje os discursos foram se sucedendo com idêntica estrutura: alega-se uma emergência, como uma ameaça extraordinária que coloca em risco a humanidade, quase toda a humanidade, a nação, o mundo ocidental etc. e o medo da emergência é usado para eliminar qualquer obstáculo ao poder punitivo que se apresenta como a única solução para neutralizá-lo. Tudo que se quer opor ou objetar a esse poder é também inimigo, um cúmplice ou um idiota útil. Por conseguinte, vende-se como necessária não somente a eliminação da ameaça, mas também a de todos os que objetam ou obstaculizam o poder punitivo, em sua pretensa tarefa salvadora. 

Ao longo de seus 800 anos, o poder punitivo jamais eliminou um risco real. É um imenso engano, uma tremenda fraude. Diríamos que o poder punitivo, ao projetar-se na opinião das pessoas como o remédio para tudo, não é mais do que o delito máximo da propaganda desleal da nossa civilização. Quando aparece um discurso com estrutura inquisitorial e ninguém detém a sua instalação, a consequência última é um massacre.

É evidente que o poder punitivo não se dedica a eliminar o perigo da emergência, e sim a verticalizar mais ainda o poder social; a emergência é apenas o elemento discursivo legitimador de sua falta de contenção. O discurso penal e criminológico é sempre um discurso acerca do próprio poder. Não existe poder sem discurso. 

Em qualquer lugar da superfície deste planeta, todos acreditam ter a solução para a questão criminal ou, pelo menos, emitem opiniões. Fala-se da questão criminal como se fosse um problema local. Poucos se dão conta de que se trata de um problema mundial, na qual se está jogando o âmago mais profundo da forma de convivência e talvez, inclusive, do próprio destino da humanidade. Estamos diante de uma encruzilhada civilizatória, uma opção de sobrevivência, de tolerância e de coexistência humana. O conjunto nos recomenda cautela no uso do poder repressivo, muita cautela.

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