Jovens em busca de uma vida melhor saem de uma cidade no interior de São Paulo rumo à capital. A promessa de que teriam ótimas condições de trabalho, poderiam visitar a família constantemente e enviar-lhes parte do salário os atraiu. No entanto, ao chegar no local, tem seus documentos retidos e passam a sobreviver no inferno. Exploração, alojamentos imundos, comida racionada, banho em dia certo… É assim que o filme nacional Os sete prisioneiros, estrelado por Rodrigo Santoro e Christian Malheiros nos traz um tema social tão importante: a exploração de corpos. É a arte imitando a vida, levando para a tela uma representação de inúmeros casos que são rotineiramente descobertos Brasil afora.
Há poucos dias, o Brasil se chocou com a notícia de que cerca de duzentas pessoas foram resgatadas das condições de escravidão em uma prestadora de serviços para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. O Código Penal traz a tipificação penal no artigo 149 com o seguinte nome: Redução à condição análoga de escravo. O que o legislador entendeu por chamar de “analogia”, é, na verdade, uma verdadeira condição de escravizado. As vítimas sofriam ameaças, agressões físicas e eram submetidas à tortura (nomear de outra forma seria um eufemismo, já que as vítimas levavam choques elétricos e os capatazes usavam contra seus corpos cassetetes e spray de pimenta).
Uma cadeia de produtores se beneficia deste regime de exploração e o que choca são os “argumentos” (se é que se pode chamar assim), do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves: “há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. É típico da burguesia criticar qualquer tipo de assistência prestada pelo Estado a quem está na base da pirâmide econômica e social e, neste caso, não foi diferente.
Quando li este absurdo, logo me lembrei das tirinhas de Confinada e Os santos, elaboradas por Triscilla Oliveira e Leandro Assis Ilustra. A burguesia atira migalhas e acredita que, de fato, as pessoas preferem viver (na verdade, sobreviver, já que o auxílio do governo mal dá para assegurar a dignidade humana) com o que lhe é dado de “mão beijada”, a trabalhar em condições dignas. Ainda, tem a ousadia de justificar o injustificável, que é a manutenção de um regime escravista, ainda que com outra roupagem.
Pouco tempo depois da divulgação do caso, as vinícolas logo se manifestaram. Curiosamente, antes mesmo de ler a nota, já sabia qual seria o teor: “não sabíamos do ocorrido, blá, blá, blá”. Há sempre o pedido de desculpas, o famoso “lamentamos pelo ocorrido”. Ora, quem é da área jurídica sabe muito bem como deve ser aplicada a responsabilidade civil neste caso, já que se trata de uma cadeia de produção. No tocante à esfera penal, igualmente deve ser apurada a omissão das vinícolas e o Ministério Público já está agindo neste sentido.
Para além das medidas judiciais cabíveis, o que deve ser ressaltado é que, em pleno século XXI, ainda temos não só os reflexos dos séculos de escravidão, como também diversas pessoas que são exploradas por um sistema que é uma verdadeira máquina de moer gente. É inadmissível que se justifique qualquer tipo de exploração e que se pratique qualquer ato de xenofobia, como fez o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel. Com um discurso segregacionista e preconceituoso, teve a ousadia de dizer que “a única cultura que os baianos tem é viver na praia tocando tambor” e que “o pessoal lá de cima” (referindo-se ao nordeste) não deveria mais ser contratado e sim deveriam contratar argentinos, “pessoal limpo, trabalhador e correto”. O acontecimento em Bento Gonçalves seria, segundo ele, “exagerado”: “temos que colocá-los em hotel cinco estrelas”?[1] Para este “cidadão de bem”, devemos nos preocupar com os empresários (coitados, eles fazem tanto e ainda estão sofrendo com a “exploração midiáticos.
É assim para quem tenta apagar a história do próprio país em que vive: reproduzir estereótipos, discursos de ódio, xenofóbicos e racistas. É por isso que precisamos que seja aplicada com efetividade a Lei 10.639/2003, que determina a inclusão nos currículos escolares do ensino da cultura e história afro-brasileira. A educação liberta e o povo deve conhecer a sua história. A Bahia, por exemplo, foi palco do maior levante de escravizados: a Revolta dos Malês. O Ceará foi o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão, 4 anos antes da Lei Áurea. O Nordeste é luta, é sangue e suor. O Nordeste é Dragão do Mar, Antonio Conselheiro, Nise da Silveira, Ariano Suassuna, Paulo Freire, Luiz Gama…
Após a repercussão negativa de sua fala, Fantinel – que foi expulso do partido, o que é, convenhamos, o mínimo – insiste que “em outro contexto, (o que disse) não teria nada de mal” e que, no calor do momento, a gente diz palavras que não nos representa. E aí vem a cereja do bolo, a carta usada sempre que uma pessoa branca é acusada de atos racistas: “o pai da minha esposa é africano, não existe esta história de dizer que sou racista”[2].
A importância da luta antirracista pode ser verificada em discursos temerosos como este. Quanto às vinícolas, nós, enquanto consumidores, podemos fazer a nossa parte. Que tal comprar o vinho Monte Vêneto, produzido pela Cooperativa de Sucos Monte Vêneto, ligada ao MST? Destaco ainda que o suco de uva orgânico ganhou, em 2019, Medalha de Ouro na Feira Internacional do Vinho, em Bento Gonçalves (RS).
Encerro o texto de hoje com uma provocação trazida por Elisa Lucinda[3] no programa Roda Viva: “você é um abolicionista moderno ou é um escravagista?”
Notas de Rodapé
[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=csuPMKiqzsM. Acesso em 02 mar. 2023.
[2] Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/politica/noticia/2023/03/num-outro-contexto-nao-teria-nada-de-mal-diz-vereador-caxiense-sandro-fantinel-sobre-falas-preconceituosas-cleq7gj8p001r016mw9dx2thq.html. Acesso em 02 mar. 2023.
[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EggmfIjVgeU. Acesso em 02 mar. 2023.