No domingo último, 02 de julho, celebrou-se o bicentenário de Independência da Bahia. Em 1823, neste dia, após muita batalha, as tropas portuguesas foram finalmente expulsas de Salvador. Confesso que este fato só foi por mim conhecido depois que comecei a me aprofundar nos estudos sobre História do Brasil, mais precisamente no Brasil oitocentista. A história que nos é contada não permitiria que soubéssemos que a Independência ocorreu por muita luta e mobilização do povo e não de um Imperador, que, montado em seu lindo cavalo, bradou às margens do Rio Ipiranga: “Independência ou morte”. Esta versão ficou imortalizada a partir do quadro de Pedro Américo, em uma tela que foi terminada em 1889.
Diversos mitos são construídos e uma versão oficial é transmitida de geração a geração. No entanto, hoje sabemos o motivo pelo qual Dom Pedro I estava às margens do Rio Ipiranga: não estava bem do estômago e precisava “se aliviar” Sabemos também que ele não estava vestido com toda aquela indumentária, já que não estava em missão oficial, ele tinha ido encontrar sua amante, a Marquesa de Santos. Por fim, sequer estava montado em um pomposo cavalo, mas sim em um burro, animal utilizado à época para percorrer longas distâncias.
Por que será que, quando pensamos em Independência do Brasil imediatamente associamos a esta cena, que nos foi plantada na mente através da pintura de Américo, encomendada por Dom Pedro II, em homenagem ao pai? O filho queria transmitir ao povo uma imagem heroica do então imperador. Aliás, a versão do “grito” foi criada por Dom Pedro, em 1827. Percebam como a história oficial é construída por homens brancos. Na tela, inclusive temos a figura – hoje questionada – do bandeirante e o povo lá longe, assistindo de forma passiva. Esta imagem, que ficou consolidada na mente dos brasileiros, sequer retrata o que, de fato ocorreu. Construída e constantemente reproduzida para que a farsa continue viva, somos deparados constantemente com a distorção histórica. O quadro de Américo foi, inclusive, reproduzido no filme Independência ou morte, de 1972, estrelado por Tarcisio Meira e Gloria Menezes.
No processo de pesquisa sobre o 02 de julho e a Independência, me deparei com a história de diversas mulheres, que tiveram um papel importantíssimo para este acontecimento e que foram invisibilizadas. Maria Quitéria, por exemplo, fugiu de casa, se alistou no lugar de seu pai e só descobriram que era uma mulher em uma batalha. Quitéria cortou seus cabelos e vestiu roupas consideradas na época como “de homens” e se alistou no Batalhão dos Periquitos, um regimento de voluntários que lutou em prol do reconhecimento de Dom Pedro I como imperador e é considerada a primeira soldada do Brasil.
Outra mulher importantíssima neste processo de independência foi Maria Felipa de Oliveira, mulher negra, ex-escravizada, marisqueira e pescadora, que surrava oficiais portugueses com folhas de cansanção – planta que causava irritação na pele – e liderou um grupo de centenas de mulheres negras, brancas e indígenas, chegando inclusive a incendiar embarcações portuguesas.
Estas duas mulheres tiveram seus nomes inscritos no livro de heróis e heroínas da pátria, título conferido a pessoas que tiveram um papel importante na defesa ou na construção de nosso país. O livro, criado em 1992, traz o nome de 64 personalidades, sendo apenas 13 mulheres.
Neste ano, a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis trouxe para a Avenida o enredo Brava gente: o grito dos excluídos no bicentenário da independência, desconstruindo o mito criado em torno do 07 de setembro e colocando luz ao 02 de julho. Não é de hoje que percebemos a importância do samba e das Escolas no processo de divulgação da “história que a História não conta”. Precisamos conhecer a nossa história, conhecer personagens que foram por muito tempo invisibilizadas, descartadas da versão contada nos livros escolares. O povo, grande protagonista nos processos de ruptura nacional, sempre é ausente da versão oficial, da versão que a “história conta”.
O quadro de Pedro Américo nos permite concluir o poder que tem uma imagem, encomendada com um propósito bem calculado e que logrou êxito em reproduzir a versão oficial, contada por homens brancos. O Norte e o Nordeste, regiões importantíssimas no tocante à participação popular nos eventos históricos, são frequentemente deixados de lado nestes movimentos de luta, conquistas e liberdades. Como bem diz o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, chegou a hora de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês.