Caso Dahmer: como o privilégio branco e o racismo institucional operam

Debates a partir da nova série da Netflix, que trata do caso real de Jeff Dahmer, responsável por múltiplos homicídios nos EUA.

Recém lançada no streaming, a série “Dahmer: um canibal americano” já ocupa a primeira posição em séries assistidas na Netflix. Inspirada em fatos reais, os dez episódios da série contam o caso do serial killer Jeff Dahmer, que praticou atos de canibalismo, necrofilia e assassinou 17 homens entre 1978 e 1991, em sua maioria homens negros e gays. O sucesso foi tamanho que a plataforma já anunciou que o próximo serial killer da série “Conversando com um serial killer” será Dahmer[1].

Como criminalista, maratonei a série e é possível refletir sobre diversos temas, como, por exemplo, como funciona o trâmite de um processo criminal nos EUA, o perfil do serial killer e a possibilidade ou não de ser aplicado no caso o direito ao esquecimento[2]. No entanto, de todas as camadas que pude captar, optei por escrever sobre o privilégio branco e o racismo que contribuíram para que Dahmer assassinasse um número tão alto de vítimas ao longo de quase quinze anos.

Julgado pela cor da pele: privilégio branco

No final da década de 80, os EUA vivam a chamada “crise do crack”[3]. Em termos de sistema judiciário, apesar do fato de que a maioria dos usuários de crack era de cor branca, mais de 90% dos condenados eram negros. A diferença de tratamento era visível e tinha a ver com a cor da pele: “Branco ainda significa vítima e negro e hispânico ainda significam dependente e criminoso”[4].

Ao ser julgado por um de seus crimes, em 1988, quando foi acusado de drogar e abusar sexualmente de um garoto de 13 anos chamado Somsack Sinthasomphone, Dahmer pode ver o que é o privilégio branco. Ao prolatar a sentença, pelo fato de Dahmer lembrar muito seu neto, a sentença foi por demais branda. Se Dahmer fosse um homem negro ele teria esta “oportunidade” concedida pelo juiz ou simplesmente seria mais um jogado no sistema carcerário?

A palavra do homem branco vale mais

Pouco tempo depois, o rapaz Konerak, de apenas 14 anos – e irmão de Somsack – é a nova vítima de Dahmer. Ele é atraído até a casa do assassino, onde é drogado, mas consegue escapar. Inacreditavelmente, os policiais John Balcerzak e Joseph Gabrish que atendem ao chamado de mulheres que encontraram o rapaz, simplesmente acreditam na palavra do homem branco: Dahmer afirma que Konerak seria seu namorado de 19 anos e que moravam juntos. Com isso vão embora do local, entregando o menino, perceptivelmente vulnerável, nas mãos do assassino terminar o serviço.

A atitude dos policiais, que sequer pedem identidade do rapaz, que não se preocupam com o fato de ele – ainda que fosse maior de idade – estar sangrando e completamente drogado – é um exemplo de total descaso, fruto de racismo e homofobia.

As mulheres negras que encontraram o rapaz e ficaram com ele até os dois policiais chegarem, pedem para que ao menos chequem a identidade do garoto. No entanto, as alegações de mulheres negras de nada valem. Nada foi feito. Afinal, por que se preocupar com um garoto – supostamente gay – em um bairro de negros, dominado pelo crack e não acreditar na palavra daquele homem branco, que estava tão calmo relatando que havia brigado com o namorado[5]?

A vizinha de Dahmer, chamada Pamela Bass[6], ligou inúmeras vezes para a polícia, relatando mau cheiro que vinha do apartamento de Dahmer e gritos. A polícia não se importou. Em nenhum momento foi até o conjunto habitacional checar a história, como se o local não fosse merecedor de ter segurança pública, direito que constitucionalmente é assegurado a todos os cidadãos.

Quem tem medo de abordagem policial?

Logo após de cometer seu primeiro assassinato, Dahmer é parado às 3 da manhã por policiais por “ziguezaguear” na pista com o carro. Aos dezoito anos, visivelmente embriagado ao volante, com sacos de lixo na parte traseira do carro, os policiais liberam o condutor sem sequer apreender a sua carteira de habilitação ou averiguar o que tinha nos sacos.

Agora pense: se Dahmer fosse negro, certamente a abordagem policial seria outra. Como homem negro, ele saberia como agir diante de uma abordagem policial e que movimentos deve fazer ou evitar[7]. Há inúmeros relatos de violência policial contra pessoas negras, como George Floyd e Clifford Owens e, mesmo que haja no local inúmeras testemunhas e registros em vídeo, o abuso de autoridade e o racismo institucional estão presentes.

De acordo com Silvio Almeida[8],

O racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça”.

Como Dahmer era um homem branco, naquela abordagem policial ele tranquilamente seguiu o seu caminho. É o privilégio branco: quando uma pessoa branca nasce, ela já nasce com privilégios em razão da sua cor da pele. Oportunidades lhes são dadas em razão disso e são blindadas de situações vivenciadas rotineiramente por pessoas negras, como violência policial.

Palavra de homem branco: quase inquestionável

Dahmer só parou anos depois, em 1991, quando a vítima Tracy Edwards conseguiu escapar de seu apartamento e – finalmente – policiais lá encontraram diversas provas dos crimes praticados por ele praticados. Em nenhum momento estava sendo procurado, apesar de diversos desaparecimentos de pessoas negras em semelhantes circunstâncias. Em nenhum momento demonstrou tensão, preocupação em ser descoberto. Em nenhum momento pensou em não mais praticar crimes com o mesmo modus operandi. Em uma sociedade racista, pessoas negras precisam a todo momento provar sua inocência, ao passo de que é preciso muito para se duvidar e questionar a palavra de uma pessoa branca.

Notas de rodapé

[1] Os dois primeiros foram Ted Bundy (cujo caso também tem filme na plataforma, estrelado por Zac Efron) e John Wayne Gacy, conhecido como Killer Clown (que aparece na série de Dahmer).

[2] Alguns familiares de vítimas de Dahmer questionaram o fato de ser produzido mais material às custas da exploração do sofrimento de quem realmente vivenciou o fato e, até hoje, tem traumas por conta disso. Saiba mais em https://olhardigital.com.br/2022/09/27/cinema-e-streaming/dahmer-familia-de-vitima-do-serial-killer-reclama-da-serie/

[3] Segundo o neurocientista Carl Hart, o medo do crack provocou uma histeria em massa, o que fez com que a Lei do Crack estabelecesse penalidades cem vezes mais severas para o crack do que para a cocaína. HART, Carl. Drogas para adultos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. p. 40.

[4] HART, Carl. Drogas para adultos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. pp. 39 e 41.

[5] Apesar de não mostrar na série, em 1991 os dois policiais são considerados culpados de negligência grave e, ainda assim, Balcernak sustenta que “fizeram o melhor”. Em razão de corporativismo, em 1994 os dois policiais foram reintegrados.

[6] Na série, a personagem é Glenda Cleveland que, na vida real, não morava no mesmo prédio.

[7] Isso é muito bem ilustrado no livro “O ódio que você semeia”, de Angie Thomas, que ganhou adaptação homônima para a telona.

[8] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Polen, 2019. pp. 37/38.

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