Como era mesmo? Tradição, propriedade e...?

Na tarde do último domingo, quem quer que transitasse pelas ruas do centro do Rio de Janeiro não poderia ignorar os primeiros lampejos da festividade mais democrática e popular já inventada: com um charme todo especial, era dada a largada para o carnaval mais esperado do século. Entre uma cervejinha e outra, uma espiadela no televisor: eram prestadas as devidas homenagens a Roberto Dinamite (1954-2023), ídolo máximo do Vasco da Gama, falecido no mesmo dia.

Foi então que, para estarrecimento geral, os canais de televisão deixaram de falar de futebol e passaram a se reportar a Brasília, que havia se tornado palco de um circo de horrores, em sua apresentação definitiva. A bem da verdade, quem estivesse antenado sabia que o evento vinha sendo anunciado desde o dia 26 de maio de 2019, data da primeira investida golpista dos bolsonaristas. Desde aquela primeira “domingueira”, a hipótese de um golpe bem-sucedido veio arrefecendo, e com toda a razão, mas, sejamos claros, pois os últimos acontecimentos o demonstraram com a máxima nitidez: tentativa de golpe, por mais amalucada que seja, é outra coisa…

De bucho cheio, as hordas golpistas rumaram, sob o olhar atento e condescendente da Polícia Militar do Distrito Federal, em direção à Praça dos Três Poderes, percorrendo um trajeto de pouco mais de uma hora. Houvera interesse público e responsabilidade, seria tempo mais do que necessário para evitar o que estava por vir. Chegando ao destino combinado, a multidão invadiu os prédios representativos dos poderes da República, depredando e saqueando tudo que encontrava pela frente.

Como se sabe, a bestialidade fascistoide é movida a ódio, intolerância e ignorância, mas há que distinguir entre dois grupos: um, que se ocupou de destruir parte do patrimônio histórico; outro, treinado e orientado, que foi atrás de documentos oficiais, discos rígidos de computador etc. Em todo caso, a conduta animalesca da multidão de bolsonaristas se ocupou de vitimar a memória histórico-cultural nacional[i], alvejando “As Mulatas”, de Di Cavalcanti; “O Flautista”, de Bruno Giorgi; “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo; “Galhos e Sombras”, de Frans Krajcberg – para não mencionar um relógio de pêndulo, provavelmente irrestaurável, com que Balthazar Martinot, relojoeiro de Luís XIV, presenteara Dom João VI, no século XVII.

Por maior que seja o número de palhaços, não se dá início ao espetáculo sem ordens superiores: seja qual for o picadeiro, sempre haverá a necessidade de organização e financiamento. E, a julgar pelo número de envolvidos, haja dinheiro, haja gestão! Ademais disso, como diz o velho ditado, “muito ajuda quem não atrapalha”, e já se pode afirmar que as calamidades de domingo se beneficiaram da ajuda de uma turba de omissos.

Ibaneis Rocha (MDB), governador do Distrito Federal, descumpriu deliberadamente todos os protocolos previamente acordados junto ao executivo federal, mas logo apressou-se para reaproveitar o recurso inventado pelo ex-juiz Sergio Moro (União Brasil): extinção de punibilidade por pedido de escusas.

Tamanha pressa em se desculpar não se confunde com confissão de incompetência, pois já veio a público um áudio de WhatsApp, em que Fernando de Sousa Oliveira, secretário de segurança interino, se reportava a Ibaneis Rocha, informando que os “manifestantes” estavam sendo “pacificamente” escoltados até a Esplanada dos Ministérios. Reitere-se: contra o que havia sido acordado com Alexandre Padilha (PT), ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, e Flávio Dino (PSB), ministro da Justiça e Segurança Pública.

Em meio ao mais completo caos, com toda a prevaricação da Polícia Militar do Distrito Federal e da Polícia Rodoviária Federal, que, em momento algum, bloqueou a passagem dos ônibus que, aos montes, garantiam livre trânsito aos bolsonaristas, o Governo Federal não tinha outra alternativa: decretou, com base nos artigos 84, caput, X, e 34, III, da CF, a intervenção federal no Distrito Federal, limitada à esfera da segurança pública, até o dia 31 de janeiro de 2023.

Entre os governadores que criticaram as ações golpistas, vale destacar os que, conservando o cinismo que lhes é peculiar, mantiveram um tom relativista, defendendo que as “manifestações” eram, sim, “legítimas”, até o momento em que descambaram para a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do edifício-sede do Supremo Tribunal Federal. Entre eles, as figurinhas de sempre: Romeu Zema (Novo, MG), Tarcísio de Freitas (Republicanos, SP) e Cláudio Castro (PL, RJ) – outrora, bolsonaristas convictos e confessos; hoje, vendo que a maré não está para peixe, ávidos de produzir uma autoimagem menos extremada. Lembrando: tanto o PL quando o Novo foram contrários ao decreto de intervenção federal.

Em uma democracia representativa, inexiste o direito de clamar por golpe de estado; clamor este que, por si só, já significaria, de fato e de direito, o incentivo a tentativas que, como vimos, rendem consequências as mais nefastas. Quem quer que empreste legitimidade a movimentos dessa natureza assume a posição de aliado objetivo do golpismo. Nesse sentido, não se pode ignorar que o atual ministro da defesa, José Múcio Monteiro Filho (PTB), comunga do mesmo raciocínio pedestre do trio de governadores citado. Pode ele se manter no cargo de ministro da defesa?

Em seu breve discurso ao conjunto de governadores, o presidente Lula foi cirúrgico e irretocável[ii]: estas pessoas não estão nas ruas na condição de manifestantes, que reivindicam aumento salarial, construção de habitações e coisas que tais; estão nas portas dos quartéis, pedindo golpe de estado, uma vez que são incapazes de aceitar o resultado das urnas.

O coronel Fábio Augusto, ex-comandante da PM do Distrito Federal, já teve sua prisão decretada; o mesmo se deu com Anderson Torres (União Brasil), ex-secretário de Segurança do DF e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro. Aliás, falando em Bolsonaro, cuja fuga para os EUA foi providencial, quase premonitória, por onde andará o sujeito? Sua inelegibilidade é certa, mas aguardamos o acatamento do pedido de extradição, que, diga-se de passagem, foi movido pelos próprios congressistas democratas estadunidenses. Por fim, a velha pergunta de que depende o futuro: quem financia e organiza o circo de horrores?

Notas de rodapé

[i] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64217624

[ii] https://youtu.be/iG51I3N29KM

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