Consciência negra e racismo estrutural

Não basta ser antirracista: há que conhecer o racismo

O Dia da Consciência Negra, oficialmente celebrado desde 2011, aos 20 de novembro, vem para ressaltar a importância que os povos de origem africana têm e tiveram para a formação do Brasil. Arrancados à força de sua terra, não se pode dizer que os que conseguiam sobreviver à terrível viagem rumo ao desconhecido tiveram sorte, pois, se continuaram existindo, foi apenas para que experimentassem o martírio da morte em vida. Os anos iam passando, somando-se em décadas, que, aviltando o mais tímido humanismo, conformaram-se em séculos de escravização. Esta é a nossa história. Não havemos de esquecê-la. Decorridos 134 anos desde a assinatura da Lei Áurea, ressoam, com perturbadora atualidade, as palavras de Joaquim Nabuco (1849-1910)[i]:

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma região natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…

Palavras que outrora poderiam ser taxadas de pessimistas mostraram-se, em verdade, de um profundo realismo. É uma tragédia que tenha ocorrido dessa maneira, mas Nabuco acertou em cheio. Examinando retrospectivamente, escovando a história a contrapelo, parece estar mais do que correto o juízo de Silvio de Almeida: o racismo é estrutural e estruturante da sociabilidade brasileira. Perfeito, mas o se quer dizer com isso?

Historicamente, a questão racial vem sendo submetida aos mais variados tratamentos teórico-metodológicos, resultando em uma ampla gama de conceituações para o racismo: algumas bastante sofisticadas, outras nem tanto. Para uma discussão introdutória, creio que faríamos bem em seguir as pegadas de Bethencourt, entendendo o racismo como um “preconceito em relação à ascendência étnica combinado com ação discriminatória”[ii]. Isto, todavia, não resolve a questão, pois não enfrenta o problema do qualificativo “estrutural”. O primeiro passo para tentar saná-lo é compreender que inexistem estruturas em si mesmas: toda estrutura é, por sua própria definição, a propriedade de um sistema. Consequentemente, ao afirmarmos que, no Brasil, verificamos uma história marcada por um racismo estrutural, assumimos, ainda que inconscientemente, que o racismo é, ele mesmo, uma propriedade dos diferentes sistemas e subsistemas que compõem a vida social nacional.

Recentemente emergida do colapso da ditadura empresarial-militar, a democracia brasileira é ainda muito frágil e imatura; uma novidade entre nós. Antes do Golpe de 1964, o que havia no Brasil não era, em nenhuma acepção do termo, uma democracia representativa[iii] (sequer havia sufrágio universal), mas, quando muito, uma oligarquia representativa. Só por essa observação já se tem em vista o amplíssimo itinerário de pesquisa a ser executado pelos interessados na questão racial e, neste particular, no racismo estrutural.

Em sendo estrutural, o racismo perpassa todos os sistemas que compõem a vida social brasileira, conduzindo-nos a uma análise que leve em conta as particularidades e singularidades de cada um desses sistemas, bem como sua interação; suas determinações concretas e as respectivas mediações intersistêmicas. Dito de outra maneira: uma coisa é a estrutura racista do sistema penal, atestada por uma política criminal de controle permanente e criminalização dos segmentos mais vulnerabilizados da população brasileira; outra coisa é o racismo estrutural do sistema educacional, em que, até bem pouco tempo, as vagas discentes e docentes das melhores instituições de ensino superior eram quase integralmente negadas aos mesmos setores – todos, por óbvio, pretos e pobres. Tais sistemas não são absolutamente independentes um do outro, mas atuam com base em dinâmicas próprias, dando forma à intrincada e contraditória teia das nossas relações de sociabilidade.

Aos que jamais sentiram na própria carne o racismo, é imperativo ético se solidarizar com as lutas antirracistas, apoiando-as ativamente. Mas isso não é tudo: a condição para a emancipação humana é o conhecimento, uma vez que não se transforma uma realidade que se desconhece. Aos que jamais sentiram na própria carne o racismo, faço lembrar aqueles belos versos de Drummond[iv] em Escrituras do Pai:

Cada filho e sua conta,
em cada conta seu débito
que um dia tem de ser pago.
A morte cobrando dívidas
de que ninguém se lembrava,
mas no livro das escrituras,
vermelha, a dívida estava.
São as despesas da vida
em algarismos cifrados.
Estarás sempre devendo
tudo quanto te foi dado
e nem pagando até o fim
o menor vintém de amor
jamais te verás quitado,
pois no livro de escrituras
– capital, juros e mora –
teu débito está gravado.

Notas de rodapé

[i] NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: Editora 34, 2012, pp. 190-191.

[ii] BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das cruzadas ao século XX. 1ª. Ed. Trad.: Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 21.

[iii] Em uma definição minimalista: “Por democracia representativa, entendo um regime que satisfaça completamente às duas condições seguintes: (1) a competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas, e cujos resultados sejam reconhecidos pelos competidores; (2) a participação da coletividade na competição se dê sob a regra do sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito de idade limítrofe.” In: SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 25.

[iv] ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras. 2009, p. 641.

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