Acometido por tuberculose e com a saúde fragilizada, em 1924, Franz Kafka morreu aos 40 anos de idade. Deixou sua obra sob os cuidados de seu melhor amigo, Max Brod, a quem solicitou fossem queimados todos os manuscritos e trabalhos não publicado[1].
Não foi o que ocorreu. Max Brod optou por desafiar o último desejo de seu amigo e fazer justamente o inverso. Permitiu-se, assim, que o nome de Kafka se tornasse simultaneamente uma das maiores referências literárias do século XX e um recorrente adjetivo, amplamente empregado para a apreciação da justaposição entre o absurdo e a realidade[2]. A primazia do desejo de Brod sobre o de Kafka modificou o rumo do realismo literário e da forma novelística[3]. Colateralmente, sentenciou todo estudante de direito a enfrentar O Processo, uma das mais enigmáticas de suas obras.
Ao contrariar Kafka, Brod o inscreveu na História. O espólio literário publicado, cuja redação se encerrou em 1922, ultrapassou a dimensão novelística, assumindo o papel de um importante e messiânico relatos em primeira pessoa do estranhamento e angústia diante de uma realidade de transformação social que se consolidava na transição do século XIX ao XX[4]. Felizmente, Kafka não descansou em seu pretendido anonimato e, deste episódio, remanesce o espólio literário que talvez melhor descreva o absurdo cotidiano com o qual tivemos de nos sujeitar a conviver[5].
O Processo
Dentro da tríade essencial kafkaniana[6], O Processo é a obra que se tornou essencial a todo estudante de direito. Não por acaso. O texto consegue simultaneamente ilustrar a severidade de uma acusação criminal, a impotência do acusado diante do estado penal e denunciar a incapacidade do iluminismo jurídico penal em concretizar princípios humanísticos no controle do poder punitivo. Essa conhecida dimensão da obra, embora inegável e importante, concentra-se no aparência imediata da história. Há, porém, uma profundidade pouco explorada, que redimensiona a importância de Kafka enquanto um tradutor do movimento de transição do capitalismo industrial ao seu estágio monopolista e, por consequência, das transformações sociais que o acompanharam[7]. E tais elementos de uma descrição ampla da realidade social estão presentes na trama d’O Processo, ainda que encobertos de uma aparência jurídica imediata.
Em grande parte de suas edições, O Processo se inicia com o alerta de que é um livro inacabado, mas não sem um desfecho. A narrativa apresenta em suas primeiras linhas Josef K., funcionário de um banco que se vê detido e processado, sem conseguir descobrir qual a acusação. E se encerra no preciso exaurimento deste arco narrativo. Quis o acaso que as lacunas deixadas pelo autor contribuíssem para a construção de uma paisagem onírica sufocante, transmitindo ao leitor a angústia do personagem e sua dificuldade de compreensão da realidade em que está inserido, ao invés de comprometer a história cujo criador reputou insuficiente[8].
Deve-se, aqui, fazer um alerta. Os próximos parágrafos resumem a trama, na medida do necessário, com explícita referência à conclusão. Se, no último século, você ainda não teve a oportunidade de lê-lo, faça-o antes de prosseguir.
A narrativa se estrutura sobre o relato de um sujeito comum que é tragado para os escaninhos de uma burocracia impessoal, irracional e impiedosa.
A acusação, grave porém indeterminada, motiva Josef K. a buscar influenciar no resultado do processo. Primeiro, contratando os serviços de um advogado e se reintegrando à rotina de trabalho, o que se revela impossível a medida em percebe que sua defesa é uma ineficaz forma de sujeição às regras do Tribunal. Neste momento o protagonista decide lutar por um veredito favorável pessoalmente, intervindo perante os funcionários do aparato judiciário e tentando obter aliados que possam interceder para o reconhecimento de sua inocência.
O processo desperta Josef K. para uma dimensão da realidade antes ignorada. Aos poucos, passa a se deparar com a extensão dos poderes do tribunal em todas as esferas de sua existência. O Tribunal, como descobre, têm representantes em todos os lugares. No decurso de aproximadamente um ano em que os eventos de desenrolam, a descrença do personagem na justiça se sedimenta. Esta transformação é ilustrada na passagem em que K. visita o ateliê de um pintor que trabalha em obras comissionadas pelo Tribunal. Observando as encomendas, percebe que a representação artística de Themis, a deusa grega da Justiça, conhecida figura estática e vendada, se apresenta sob a forma de Diana, deusa da caça, em movimento e prestes a capturar sua presa. Percebe, então, ter entendido erroneamente sua posição diante do Tribunal. Naquele cenário, ele é a presa.
A concretude do absurdo eventualmente soterra o protagonista. Este não mais consegue confiar nas pessoas ao seu redor, que continuamente se revelam conhecedoras de muito mais detalhes sobre o seu caso do que ele próprio. Muitos o alertam sobre a inutilidade de tentar se defender diante do tribunal, a inevitabilidade da condenação e a necessária resignação ao destino enunciado. Destino que, ao final do livro, de fato se cumpre com a execução do condenado, que jamais soube do que foi acusado. “Como um cão”, pensa Josef K. sobre suas condições no momento em que se cumpre o veredito[9].
O Convite
Em sua aparência imediata, O Processo é um relato opressivo da impessoalidade burocrática. Uma novela em que o aparato institucional anônimo invade todas as dimensões da vida privada do sujeito, subjuga-o e, por fim, o elimina. Um embate desigual de forças em que a única resposta possível é a sujeição.
É possível, porém, transcender a aparência do relato. A narrativa não se resume às evidentes e conhecidas críticas ao arbítrio do sistema punitivo, a denúncia de injustiças e desumanidades de um aparato judicial que reduz o indivíduo à condição de objeto[10]. O Processo, assim como outros escritos de Kafka, insere-se em um segundo momento da literatura burguesa, não mais centrada na potencialidade do indivíduo e na sua saga contra a sociedade – a exemplo de Juien Sorel, o alpinista social e protagonista de Stendhal em O Vermelho e O Negro. Os protagonistas de Kafka são sujeitos comuns, sem características heróicas ou excepcionais, cujas ações são orientadas não pela concretização de seu potencial individual, mas pelo desespero de se ver, a um só tempo, reduzido ao papel social que lhe é exigido e impossibilitado de realizá-lo por uma força externa, misteriosa e impessoal – a transformação em inseto de Gregor Samsa, a acusação de Josef K. e o inacessível castelo de K.
Em Kafka, o indivíduo não é o átomo do convívio social, gozando de sua liberdade para atingir a realização pessoal. Os sujeitos kafkanianos são pessoas oprimidas por forças objetivas e de difícil compreensão, reduzidas à posição de objeto impotente diante do absurdo de uma realidade em transformação. Esse ponto de partida é, em realidade, um convite. Um convite a ler e discutir Kafka, sua importância e contribução jurídica, sociológica, literária e criminológica, enquanto um autor historicamente situado e que, contra sua vontade, alertou-nos sobre o que espreitava no horizonte.
Notas de rodapé
[1] BROD, Max. Franz Kafka: a biography. 2 ed. Nova York: Shocken Books, 1960.
[2] ROBERTSON, Richie. Franz Kafka: a very short introduction. Oxford: Oxford University, 2004.
[3] CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, vol. III: do ‘fin du siècle’ às tendências contemporâneas. Campinas: Sétimo Selo, 2021, p. 555.
[4] HOBBSBAWN, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. 24 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017, p. 24.
[5] “COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 156.
[6] Composta de suas novelas mais conhecidas e paradigmáticas, O Processo, A Metamorfose e O Castelo.
[7] COUTINHO, op. cit., p. 139-140.
[8] CORNGOLD, Stanley. Franz Kafka: the necessity of form. Ithaca: Cornell University, 1988, p. xi.
[9] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 278.
[10] Embora já houvesse sido formulada por Von Bülow a concepção de processo penal enquanto relação jurídica desde 1868 , a temática central dessa obra de Kafka é a persistência da posição impotente do acusado, reduzido a mero objeto, incapaz de influenciar em seu próprio destino