Mal chegou ao streaming e o documentário “Racionais MCs: das ruas de São Paulo para o mundo” já ocupa o ranking dos mais assistidos na plataforma. O quarteto, formado por Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock tem mais de trinta anos de estrada e estourou no país com o álbum “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997. O referido álbum vendeu um milhão e meio de cópias, recentemente virou livro e passou a integrar a lista de leituras obrigatórias para vestibulares, como o da Unicamp, em 2020[1].
Nas décadas de 90/2000, a MTV era bastante popular entre jovens e era lá que diferentes estilos musicais – samba, rap, rock… – eram distribuídos na grade de programação. Foi assim que vi “Diário de um detento”[2], clipe premiado em duas categorias em 1998, cuja letra é composição de Mano Brown e Jocenir e fala sobre o Massacre do Carandiru, ocorrido em 02 de outubro de 1992.
Nesta época de ouro da MTV Brasil, os Racionais já tinham lançado outros discos[3] que estouraram na periferia, que cantava as músicas e lotava os shows da banda, que colocava em forma de versos a realidade vivenciada pelo jovem negro no Brasil. O som era tão potente que ganharia o mundo.
Da periferia de São Paulo para o mundo
O documentário narra a trajetória da banda, cujo trabalho social – segundo KL Jay – é a sua música, que muda a atitude das pessoas.
Aqueles então garotos que viviam em uma verdadeira zona de guerra (assim descrito pelo próprio Ice Blue, que todos os dias, via um cadáver nas ruas de onde morava) queriam ser ouvidos. Tinham visão, sabiam da importância de levar a mensagem para a galera da periferia e foi assim que Edi Rock e KL Jay montaram bailes, levando para a periferia o que rolava no centro.
Era preciso levar conhecimento, esperança e ideais revolucionário para os jovens cujos destinos pareciam traçados pela sociedade que durante quase quatrocentos anos, arrancou do continente africano milhões de pessoas para aqui serem escravizadas. O reflexo deste regime escravista é sentido pelos descendentes de escravizados até os dias atuais, em uma sociedade racista, que ainda tenta controlar corpos negros.
Os Racionais, que sabem que muitos acabam morrendo, entrando para o crime e consequentemente para o sistema carcerário, sendo apenas mais um número na estatística, apostam na música como revolução e canal de conscientização. Enfrentavam toda a repressão naquele período pós-ditadura: “anos 80 foi um período horrível para os negros”, diz Brown. O grupo era recebido da pior maneira possível pela polícia por onde tocavam.
O show dos Racionais era sempre um barril de pólvora que poderia estourar a qualquer momento. Mas eles seguiram em frente.
“Tudo era adversário, até a nossa ignorância”
No começo do grupo, Mano Brown reflete sobre as adversidades. Era ir sempre contra a maré e era preciso ampliar os horizontes do conhecimento.
Indo de encontro ao que a sociedade esperava daqueles quatro jovens negros, eles começaram a ter contato com o movimento negro politizado, a conhecer figuras como Malcolm X e à música revolucionária do Public Enemy.
Em pouco tempo, o Racionais fez uma ponte importantíssima, estabelecendo uma união entre este movimento político e os jovens da periferia.
O Racionais já falava de política, racismo, violência policial, desigualdade social e necropolítica naquele momento em que a democracia voltava após os terríveis anos de chumbo. Em todos os shows, exaltava a importância da consciência, do letramento, do estudo, para não ser mais um jovem negro na estatística.
A Justiça Criminal é implacável. Tiram sua liberdade, família e moral. Mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para sempre de ex-presidiário. Não confio na polícia, raça do caralho!
Durante os shows, Mano Brown começa a se preocupar com o que acontecia e não queria que fosse um clichê: “show do Racionais e cadáver”. Ele já se sentia mal ao cantar as músicas, que, segundo ele criavam uma atmosfera pesada em razão da “piscina de sangue” que era o conteúdo das letras. Era preciso uma pausa. Pausa para respirar e para encontrar a “Fórmula mágica da paz”.
“Vamo acordar, sou mais você nessa guerra. Você é do tamanho do seu sonho”
Nunca pensaram só neles. Nunca foi sobre algo individual, sobre ascender socialmente e ter conforto para si e a família apenas. Era sobre o coletivo.
O Racionais se preocupava em ir para lugares em que a sociedade depositava seus indesejáveis, seus marginalizados: presídios e reformatórios, por exemplo. Queriam abrir a mente dos jovens, divulgar o trabalho da galera nova e, assim, ampliar o poder do povo preto.
Após um hiato de cerca de dez anos, voltam com força, explodindo com “Mil faces de um homem real”, trazendo um pouco da história de Marighella.
Todos os líderes negra que ressaltou a revolução negra foi foram perseguidos e calados dessa forma. Tudo o que eu fiz e faço é Código Mariguella, diz Ice Blue.
Não conseguiriam calar os Racionais. Com “Mil faces de um homem leal”, os Racionais chegou ao primeiro lugar novamente. 14 anos depois de subir ao pódio na premiação daquela emissora, eles mostram a sua força e potência.
“Você pula na bala também”
Atentos e combativos, os Racionais são intelectuais, cientistas sociais que levam através da arte a mensagem de resistência e revolução.
Com relação ao racismo, Mano Brown diz que “a escalada de um negro na sociedade é tensa. Quanto mais alto o degrau, maior o adversário.” E, com propriedade, afirma:
Racismo não é só coisa do preto, do outro. O racismo é errado, injustiça é errado. Você tem que reclamar. Se você é branco e vê preto ser discriminado, você pula na bala também.
Você, pessoa branca, precisa se posicionar, não ser omissa e conivente ao tomar conhecimento de qualquer caso que envolva o crime de racismo. Estamos, como KL Jay bem fala, em uma guerra e, por isso, é preciso que sejamos aliados na luta antirracista.
“A revolução tá precisando de coração”
Mano Brown fala que sua revolução é a música e que faz música para os jovens negros. Spike Lee diz que os Racionais são o Public Enemy do Brasil[4]. A banda é respeitadíssima e não se esquece de suas origens, de como tudo começou e qual é o objetivo.
Quando aqueles quatro jovens se uniram para fazer um som, não tinham consciência da importância do que cantavam. Décadas depois de estrada e sabedoria, eles já sabem do papel que tem: fazer a revolução, inspirando muitos e muitas.
Notas de Rodapé
[1] Para análise do disco, sugiro a leitura do artigo publicado na Revista Entropia, escrito por Rodrigo Ferrera, Roberta Araujo e Thiago Araujo, disponível em https://entropia.slg.br/index.php/entropia/article/view/291/289 .
[2] A música ocupa a posição 52 das 100 melhores músicas brasileiras, de acordo com a Rolling Stone. Em 2012, a Folha de São Paulo colocou o clipe na segunda posição na lista de “Melhores clipes brasileiros de todos os tempos”.
[3] Discografia da banda: Holocausto urbano (1990), Escolha o seu caminho (1992), Raio X do Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997), Nada como um dia após o outro dia (2002) e Cores e valores (2014)
[4] Disponível em https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/02/1415993-os-racionais-mcs-sao-o-public-enemy-do-brasil-diz-cineasta-spike-lee.shtml