I. Direito penal, ultima ratio e insignificância
Em agosto de 2013, um homem, impulsionado por motivações desconhecidas, decidiu esfregar torradas com manteiga no vidro do veículo utilitário de sua vizinha. O ato, presenciado por testemunhas oculares, gerou comoção na pequena cidade de Union, Carolina do Sul, Estados Unidos. Cristopher Brannon, acusado de dolosamente danificar a propriedade alheia foi imediatamente detido, numerado e inserido no sistema de justiça criminal americano. O “dano” foi estimado em um dólar.[1]
Espanta a banalidade do ato que culminou em uma prisão. Uma ofensa quase caricata, cujas razões sequer constaram nos autos lavrados pela autoridade policial[2], foi o suficiente para dar ignição ao emprego da violência oficial do Estado. A banalização do encarceramento, da tormenta processual e do estigma do direito penal é manifesta.
O sistema americano, common law, difere das raízes europeias que orientam a versão pátria do civil law. No Brasil, em que o sistema jurídico possui maior apego ao legalismo, com um ordenamento de bases constitucionais garantistas, supostamente orientado à proteção de direitos e garantias individuais, não soa possível um uso tão arbitrário do aparato de persecução estatal. No mínimo, supõe-se, o princípio da legalidade estrita, base de todo o direito penal, coibiria a instauração de ações penais por fatos de pequena importância.
Infelizmente, nossa realidade muito se afasta do emprego do direito penal como ultima ratio. O Brasil é notadamente um país em que a polícia e a penitenciária atuam como linha de frente tanto na resolução de quaisquer conflitos interpessoais quanto no apaziguamento dos mais diversos problemas sociais.
O direito penal move suas engrenagens para resguardar minhocas, enquanto degrada a vida dos seres humanos que são submetidos ao sistema de justiça criminal. Soa absurdo, mas a estranheza causada pela realidade não a torna menos real.
Em 1999 o Superior Tribunal de Justiça encerrou uma ação penal – que passou quase cinco anos em trâmite – instaurada em face de quatro jovens de Paraopeba, Minas Gerais. Eles foram denunciados pelo furto de quatro minhocuçus (rhinodrilus alatus), espécie de minhoca utilizada para pesca. Um para cada.
A persecução, iniciada com o “flagrante” dos acusados, chegou a ter uma perícia realizada, atestando a materialidade do crime pelos buracos cavados no terreno. Os espécimes subtraídos foram devolvidos ao proprietário da fazenda em que teriam sido encontrados. Com a chegada dos autos à Instância Superior, foi alcançada solução judicial pela aplicação do princípio da insignificância. Conforme apontado pelo relator do processo, Ministro Fernando Gonçalves: “incide o princípio da insignificância, porque a conduta dos acusados não tem poder lesivo suficiente para atingir o bem tutelado pela lei nº 5.197/67 (que trata sobre crimes contra a fauna). A pena porventura aplicada seria mais gravosa do que o dano provocado pelo ato delituoso”[3].
A insignificância penal, desdobramento do princípio da lesividade, mitigou os danos causados pelo distorcido emprego do sistema de justiça criminal. Em uma situação de inconteste desproporção entre a resposta estatal e o ato perseguido, a necessidade em se coibir a movimentação dos órgãos persecutórios era manifesta.
Mas o que a insignificância não foi capaz de fazer foi impedir o oferecimento de uma denúncia. Deixou que uma injusta persecução caminhasse até alcançar um Tribunal Superior que pronunciasse o óbvio: os fatos, embora formalmente típicos, não poderiam ser considerados criminosos.
II. O titular da ação penal e o suposto exercício do livre direito de denunciar
Titular da ação penal, fiscal da lei e tutor dos interesses sociais, direitos indisponíveis e do regime democrático. Essa síntese das atribuições constitucionais do Ministério Público[4] apresenta o desenho de uma instituição que ocupa praticamente todas as frentes de interação entre o Estado e a sociedade. Com uma ampla gama de competências e posição privilegiada no arranjo institucional do Estado Democrático de Direito concebido pela Constituição da República de 1988, há evidente protagonismo do Parquet na condução dos assuntos da República. Ainda assim, sua mais conhecida face – porque decorrente de um direcionamento privilegiado de atuação – é enquanto agente da violência estatal legitimada.
De fato, o Ministério Público direciona a maior parte de seus recursos, humanos e materiais, para o exercício de sua competência criminal. A decisão de privilegiar a atuação penal está intimamente ligada com à agenda burocrática e política que se desenvolveu no âmbito da instituição, ampliando as fronteiras de sua atuação e a discricionariedade de seus agentes.[5] É enquanto titular da ação penal – competência originária prevista na Constituição -, agente investigativo – competência obtida após intensos embates com agências policiais – e agente negociador – competência construída a partir da incorporação de institutos próprios do common law no ordenamento nacional, como os acordos de não persecução, leniência e colaboração premiada – que o Parquet assume um maior peso no arranjo institucional e tensiona sua interface com os agentes políticos. As megaoperações conduzidas por forças tarefas ministeriais, orientadas à investigação e repressão de agentes políticos, foram instrumentos essenciais na consolidação do Ministério Público enquanto verdadeira potência política e burocrática, apta a intervir e direcionar os rumos políticos e jurídicos da nação.[6]
Um dos resultados dessa bem-sucedida cruzada por maior espaço e importância institucionais é a ampliação do espaço e discricionariedade de atuação dos quadros vinculados ao Ministério Público. No atual panorama, embora não se possa ignorar a atuação da Corregedoria e Conselho do Ministério Público sobre seus membros, o que se verifica é uma flexibilização das margens decisórias dos Promotores de Justiça e Procuradores da República: cabe ao agente ministerial optar pelo oferecimento ou não de acordos de não persecução, de propostas de colaboração de denúncias. Ainda que existam balizas legais mínimas, o espaço de discricionariedade é amplo, especialmente quando se está diante do controverso direito de denunciar – muitas vezes manejado de forma irracional contra fatos manifestamente atípicos, como é o caso do furto de minhocuçus e tantas outras narrativas de lesões insignificantes.
III. O problema: quem fiscaliza o fiscal da lei?
A questão da insignificância penal, a despeito da tentativa de subversão conceitual operada pela jurisprudência pátria, é bastante simples do ponto de vista dogmático. Trata-se de uma análise de tipicidade material, em que se deve observar se a conduta concretamente praticada atinge – ou, no caso de tentativa, era capaz de atingir – o bem jurídico tutelado pela norma de forma suficientemente intensa para demandar intervenção penal. Decorre, portanto, tanto do princípio da lesividade em sua dimensão qualitativa, que engloba a subsidiariedade e coloca a intervenção penal como ultima ratio, quanto de sua dimensão qualitativa, que busca analisar a intensidade da lesão a partir do binômino dimensão X afetação do bem jurídico.[7]
Em tese, trata-se de situação de fácil verificação, que deveria ocorrer em etapa preliminar à instauração de qualquer investigação ou processo criminal. Afinal, se o fato é atípico por não ultrapassar o limiar da lesividade, sequer se pode cogitar a incidência da norma penal sobre seu autor. Não é, porém, o que ocorre. Como no ilustrativo caso do furto de anelídeos que residiam sob o solo de alguém, mesmo diante de atos inegavelmente insignificantes, o Ministério Público preserva seu direito de denunciar, isentando de qualquer responsabilidade o agente subscritor da persecução penal, ainda que suas ações tenham evidente capacidade de destruir a vida daquele que são denunciados fora das hipóteses legais para tanto – vez que a atipicidade material afasta o caráter criminal do fato.
O objeto deste pequeno excurso é a reflexão sobre o papel e a responsabilidade institucional sobre o exercício concreto do poder punitivo. Sem a pretensão de ingressar nos debates dogmáticos sobre a insignificância – até porque, as controvérsias sobre o instituto são praticamente inexistentes na doutrina qualificada – o objeto da provocação é bastante singelo: se o exercício de cargos públicos demanda responsabilidades, o exercício do poder punitivo, com maior razão, exige responsabilização e não comporta arbitrariedades ou imunidades. Nessas condições, é possível conceber um amplo e desembaraçado direito de denunciar?
Notas de rodapé
[1] Disponível em:<http://thetandd.com/news/state-and-regional/sc-man-charged-with-smearing-buttered-toast-on-suv/article_da235a4f-7393-5cd3-a733-ded549d63986.html> Acesso em 5 out. 2023.
[2] Disponível em: <http://www.ibtimes.com/man-arrested-allegedly-spreading-buttered-toast-neighbors-suv-christopher-brannon-charged-malicious> Acesso em 13 out. 2023.
[3] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/1999-jul-07/roubo_minhocas_nao_configura_crime_fauna> Acesso em 13 out. 2023.
[4] Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
[5] A. VIEGAS, Rafael Rodrigues. A face oculta do poder no Ministério Público Federal e o poder de agenda de suas lideranças. Revista Brasileira de Ciência Política, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/WNJ8CgYg9ZfcfhFMrQpyJgs/ Acesso em 10 out. 2023.
[6] B. ARANTES, Rogério B.; MOREIRA, Thiago M. Q. Democracia, instituições de controle e justiça sob a ótica do pluralismo estatal. In: Opinião Pública, pp. 97-135, 2019. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/op/a/y9dCbmHBdT8QJTDZh563fFx/?lang=pt> Acesso em 13 out. 2023.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general III. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 230-231.