Descriminalização das drogas para uso recreativo

Precisamos nos despir de preconceitos e considerar seriamente a questão das drogas

Droga. Esse é um daqueles temas que parece inspirar toda e qualquer pessoa a formar uma opinião (mais ou menos) própria. Seja defendendo a legalização ou descriminalização, seja enxergando nelas a materialização do “mau”, é difícil – quem sabe até impossível – encontrar alguém que não tenha uma posição sobre esse importante tema; sobretudo quando falamos na descriminalização das drogas.

Na última semana, o assunto retornou aos holofotes, com a notícia de que o Supremo Tribunal Federal teria agendado a continuação de um julgamento decisivo sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal[1]. O Recurso Extraordinário 635.659, cujo julgamento teve início há oito anos, finalmente retorna a pauta para determinar – em sede de repercussão geral – como podemos distinguir o porte de drogas para consumo da prática de tráfico[2].

Em meio a essa incerteza jurídica, uma esperança de mudança reside na posição de alguns dos ministros do Supremo. Embora qualquer previsão seja arriscada nesse momento, há uma clara expectativa de que o Supremo estabeleça critérios para alguma forma de descriminalização. Três ministros já votaram favoravelmente: Gilmar Mendes votou pela descriminalização do porte de qualquer droga, sem especificar quantidade, enquanto Edson Fachin e Luis Roberto Barroso sugeriram a descriminalização apenas do porte de maconha.

Esta votação reveste-se de grande importância, dado o alvo central da discussão: o porte de drogas. Quando refletimos sobre a legitimidade da chamada “guerra às drogas”, muitas vezes esquecemos que essa expressão é enganosa. Afinal, não estamos verdadeiramente em uma guerra contra as drogas per se, mas sim contra uma modalidade específica de uso[3]. Não há contestação em relação ao uso de drogas em contextos médicos; a controvérsia reside no seu uso recreativo. Este é o foco da reflexão que proponho neste breve artigo.

Drogas como recreação

A primeira vista, a distinção entre uso medicinal e recreativo de drogas pode parecer clara, mas é fundamental nos aprofundarmos nesse contraste. Contrariando suposições comuns, a diferença não reside necessariamente nos tipos de droga, mas sim na finalidade com que são usadas[4]. Frequentemente, as mesmas substâncias podem ter usos completamente diferentes.

Quando consideramos especificamente o que podemos chamar de um uso recreativo de drogas, estamos falando daquele uso cujo propósito está ligado ao efeito de aumento da felicidade, alegria ou da sensação de euforia; ou seja, é o uso para obter um estado psicológico positivo – um barato, um high*[5]***. Aquele sentimento que você tem quando seu time ganha uma partida de futebol, ou quando a pessoa em quem você tem um crush te responde. Esse tipo de prazer. Um prazer que todos não apenas conhecemos, mas que todos desejamos.

Para além de todo o moralismo que circunda o tema, é importante reconhecer uma característica essencial do uso recreativo de drogas: as pessoas usam drogas porque elas podem ser prazeirosas. E não há nada de intrinsicamente errado em querer sentir prazer.

Tomemos como exemplo um jogo de futebol com amigos. A prática pode ser justificada pelo seu valor cardiovascular, trazendo benefícios diretos à saúde, mas muitos a realizam pelo puro prazer da companhia dos amigos e da atividade em si. Mesmo que nunca saiam do banco, a satisfação proporcionada pela socialização pode ser suficiente. No entanto, muitas pessoas sentem a necessidade de mascarar suas práticas prazeirosas com justificativas médicas ou de desenvolvimento pessoal. Quem nunca ouviu a afirmação de que a cerveja pós-jogo tem um propósito “terapêutico”?

A discussão essencial é que a busca por prazer, inclusive o que pode ser proporcionado pelo uso de drogas, deveria ser suficiente para questionarmos a legitimidade da prática de penalizar pessoas por isso. O foco não deveria estar na substância em si, mas na finalidade e na maneira do seu uso. Uma das dificuldades em lidar com esse problema advém da confusão gerada pela falta de clareza sobre as diferentes formas de uso de drogas.

Uso medicinal ou recreativo?

Tradicionalmente, nossa perspectiva sobre o uso recreativo de drogas é caracterizada por uma visão restrita: tudo que não se enquadra no uso medicinal, cai no campo recreativo[6]. Mas aqui está o impasse – essa divisão é tão nítida quanto a diferença entre um tubarão e um golfinho à distância: parece simples até que você perceba que um deles pode te morder.

Peguemos como exemplo a cafeína. Por que consumimos cafeína? E por que, às vezes, escolhemos um café regular e, em outros momentos, optamos pelo descafeinado? A resposta é tão patente quanto o sol: desejamos que uma substância química, a cafeína, produza um efeito estimulante, ajudando-nos a alcançar um estado de alerta e energia. Portanto, quando tomamos o café matinal, é um uso recreativo ou medicinal? Não é uma questão tão simples, no fim das contas.

A cafeína está tão embrenhada em nossa rotina que nem ponderamos sua condição de estimulante. Embora se encaixe perfeitamente na definição de droga – “qualquer substância, além da comida, cuja natureza química afete a estrutura ou função de um organismo vivo”[7] -, a cafeína, felizmente, não está na lista de substâncias proibidas. Afinal, quem quer um mundo onde a cafeína seja proibida? E você achando que a segunda-feira na firma não podia ficar pior.

Em geral, as drogas usadas para fins medicinais são aquelas prescritas para tratar uma condição médica – uma doença. Simples, correto? Não exatamente. Distinguir entre o que é, de fato, uma condição patológica, e o que não é, pode ser uma tarefa tão simples quanto tentar desvendar o significado do “Branco sobre Branco” de Malevich.

Branco sobre Branco de Malevich
Branco sobre branco (1918), de Kazimir Malevich

Contemporaneamente, sobretudo após a revolução farmacológica, a prática da medicina não se resume mais ao tratamento de doenças bem definidas, como a pneumonia ou o câncer. Nessa era de avanços tecnológicos constantes, muitos profissionais da saúde se deparam com a possibilidade de prescrição de medicamentos para o gerenciamento de condições problemáticas que, apesar disso, não são consideradas propriamente doenças[8]. Basta considerarmos o aumento de consciência e estudos diante de situações como ansiedade, síndrome do pânico, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e assim por diante. Essas condição podem não parecer tão imediatamente problemáticas quanto uma fratura óssea, mas isso não significa que não posam ser tão debilitantes quanto.

Por mais que a comunidade médica possa discutir sobre onde exatamente devemos traçar a linha entre o patológico e o “normal”, a realidade é que essas condições podem – e provavelmente devem – contar com intervenções medicamentosas como parte do arsenal para a sua gestão. A questão é que isso complica ainda mais nosso enigma original: quando é que o uso de drogas é considerado medicinal e quando é considerado recreativo?

E não precisamos entrar em profundas discussões científicas para encontrar exemplos do cotidiano. À medida que os homens envelhecem, a biologia segue seu curso e a libido já não é a mesma, nem a habilidade de manter uma ereção. Essa mudança é um fato natural da vida, não uma doença. Então, quando um homem está diante dessa situação e opta por tomar um Viagra uma droga —, para satisfazer seu desejo e ter uma sensação psicológica positiva – prazer –, esse uso é recreativo ou medicinal?

Se observarmos o uso recreativo de drogas com honestidade, veremos que muitas pessoas usam o MDMA, ou ecstasy, pela mesma razão que algumas tomam Viagra: para potencializar o prazer sexual. E se abandonarmos nossos preconceitos, perceberemos que a função da cafeína, da taurina (presente nos energéticos) e da cocaína é essencialmente a mesma: deixar as pessoas mais alertas e potencialmente eufóricas. O mesmo vale para a maconha. Alguns preferem saborear um bom vinho para relaxar, enquanto outros preferem “acender um”. Em suma, estamos todos buscando o prazer, apenas seguimos caminhos diferentes. E isso, meus amigos, é mais comum do que respirar.

Uso e abuso de drogas

Indicar que drogas são substâncias que tem o potencial de trazer sensações psíquicas desejáveis para as pessoas não significa, é claro, reduzir seu funcionamento a essa possibilidade. Há um potencial real para o abuso dessas substâncias, principalmente quando utilizadas em meio a certas circunstâncias biológicas, psicológicas e sociais.

O uso de drogas, como a maioria das coisas na vida, não depende apenas de nós para determinar seu resultado. É como o trabalho de um marinheiro: navegar em águas calmas é fundamentalmente diferente de fazê-lo em meio a uma tempestade; e, embora saibamos qualquer marinheiro escolheria a primeira opção à segunda, nem sempre poderá escolher qual o melhor dos caminhos. Normalmente lembramos da primeira cerveja; certamente lembramos do primeiro porre. A questão sobre como levaremos essa experiência adiante tem relação muito maior com o resto da nossa vida do que, de fato, com a cerveja que tomamos.

Quando consideramos que os casos de abuso de drogas são estatisticamente irrelevantes, quando comparados ao número total de usuários ativos de drogas – como brilhantemente demonstrado por Carl Hart, professor de neurociência e psicologia da Universidade de Columbia – começamos a perceber como a política de proibicionismo é despida de qualquer racionalidade[9]. Mesmo com os casos problemáticos constituindo uma minoria, as histórias – muitas vezes trágicas – desses indivíduos costumam ser contadas e recontadas, criando uma imagem distorcida do uso social de drogas e levando a um pânico moral[10]. O abuso de drogas pode fazer mal, assim como seu uso pode salvar vidas: a questão não está nos extremos, mas sim na absoluta maioria de casos que se concentra no centro dessa distribuição normal.

Drogas para Adultos trata da questão da descriminalização das drogas
Drogas para Adultos (2021), de Carl Hart

Descriminalização não é o suficiente

Se há potencial para abuso de qualquer droga – e vamos ser honestos, algumas mais do que outras —, não significa que todas as drogas são feitas da mesma maneira. É aí que está a diferença. Estamos lidando com uma indústria que, no seu estado atual, não tem qualquer tipo de controle ou regulamentação. E, como qualquer estudante de economia sabe, na ausência de qualquer controle de qualidade, o mercado de drogas tenderá a criar mercadorias cada vez mais “eficientes” do ponto de vista do produtor. Essa é uma regra básica do capitalismo, não é uma teoria da conspiração.

Pense no processo de produção da cocaína. A cocaína não é produzida em fábricas limpas, com controles rígidos de qualidade. É feita em laboratórios clandestinos, em condições insalubres, muitas vezes diluída com outras substâncias para aumentar os lucros. E é a partir desses processos que surgem drogas como o crack, composto da pasta base de cocaína e bicarbonato de sódio, apesar de semelhante à cocaína, é produzida de tal forma que torna seus efeitos muito mais nefastos — razão pela qual é chamada de “cocaína dos pobres”[11]. Este é um subproduto barato da cocaína, criado quando os traficantes a diluem para aumentar seus lucros. E, vamos encarar, quando seu químico é o traficante da esquina, você não tem exatamente um padrão de qualidade garantido. É como pedir para um eletricista realizar uma cirurgia cardíaca – provavelmente, as coisas não vão acabar bem.

E aqui está o verdadeiro nó górdio do problema: descriminalizar não é o suficiente. Isso porque a descriminalização ataca apenas a ponta do iceberg. É como ir a um médico com uma perna quebrada e ele apenas te dar um analgésico. Vai aliviar a dor? Sim. Mas a perna ainda está quebrada, e você provavelmente não vai conseguir sambar tão cedo.

Para resolvermos o problema dessas substâncias, precisamos ir além da mera descriminalização. Precisamos buscar a legalização de todas as drogas, estabelecendo critérios claros para o controle da qualidade das substâncias que consumimos, como fazemos com todas as outras.

Essa ideia pode parecer alarmante para alguns; mas basta que lembremos de um velho amigo. O álcool, uma droga perfeitamente legal, passa por um rigoroso controle de produção e qualidade. Imagina se o álcool fosse produzido em condições semelhantes às da cocaína ou do crack. Teríamos uma epidemia de cegueira por metanol, assim como aconteceu durante a Lei Seca nos Estados Unidos nos anos 1920[12].

Então, quando falamos em legalizar todas as drogas, não estamos sugerindo uma anarquia química. Estamos falando de trazer a produção de drogas para a luz do dia, onde ela possa ser regulada, controlada e segura, assim como é feito com qualquer outra substância que consumimos. E o fato é que, ao legalizar e regular todas as drogas, podemos enfrentar diretamente a questão do abuso e dependência, oferecendo ajuda em vez de punição. Podemos também garantir que o que as pessoas estão consumindo é seguro, e não misturado com substâncias perigosas. E, finalmente, podemos acabar com a violenta e destrutiva guerra contra as drogas, que já demonstrou ser um fracasso retumbante.

Julgamento

À luz da retomada do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, é imperativo revisitar nossas concepções, muitas vezes infundadas e preconceituosas, sobre o uso de drogas. A verdade é que a distinção entre o uso recreativo e medicinal é mais nebulosa do que parece; e a compreensão de que a intenção e os efeitos desejados definem o tipo de uso – e não necessariamente a substância em si – pode abrir um caminho para debates mais informados e menos polarizados.

No que tange à descriminalização do porte de drogas, não há como considerar qualquer caminho que não a sua execução absoluta – e o voto do Ministro Gilmar Mendes transparece muita esperança nesse caminho. Drogas de todos os tipos, desde a cafeína até o ecstasy, são usadas para melhorar a qualidade da vida das pessoas que as usam (e não delas abusam): seja por melhorar a concentração, aliviar o estresse ou intensificar a satisfação sexual, cabe repetir que drogas podem ser positivas. Precisamos acabar com os preconceitos que cercam o tema, reconhecendo o uso de drogas como um aspecto multifacetado da experiência humana, com implicações sociais, culturais e políticas.

O julgamento do STF, embora limitado em seu escopo, pode representar um importante passo em direção a uma abordagem mais sensata e baseada, de fato, em evidências científicas e discussões racionais. Qualquer discussão séria sobre uma política de drogas precisaria passar também por análises médico-terapêuticas, farmacológicas, econômicas e jurídicas, não ficando limitada à questão da descriminalização do porte para uso; mesmo assim, após décadas de uma política irracionalista, merecemos comemorar todo e qualquer avanço. Basta saber com quais drogas o faremos.

Notas de rodapé

[1] ROSA, João. STF deve julgar na semana que vem descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. CNN Brasil. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/stf-deve-julgar-na-semana-que-vem-descriminalizacao-do-porte-de-drogas-para-uso-pessoal/. Acesso em: 30 may. 2023.

[2] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506

[3] HUSAK, Douglas N. Drugs and Rights. 1. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 44.

[4] Ibid., p. 44.

[5] JONAS, Steven. Solving the Drug Problem: A Public Health Approach to the Reduction of the Use and Abuse of Both Legal and Illegal Recreational Drugs. Hofstra Law Review, v. 18, n. 3, 1990. Disponível em: https://scholarlycommons.law.hofstra.edu/hlr/vol18/iss3/8. p. 751.

[6] HUSAK, Douglas N.; DE MARNEFFE, Peter. The legalization of drugs. Cambridge ; New York: Cambridge University Press, 2005. p. 19.

[7] JONAS, p. 751.

[8] PETERSON, Destiny; KEELEY, Jared W. Syndrome, Disorder, and Disease. In: CAUTIN, Robin L.; LILIENFELD, Scott O. (Orgs.). The Encyclopedia of Clinical Psychology. Hoboken, NJ, USA: John Wiley & Sons, Inc., 2015, p. 1–4. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118625392.wbecp154. Acesso em: 30 maio 2023.

[9] HART, Carl. Drogas para adultos. São Paulo: Editora Schwarcz – Companhia das Letras, 2021.

[10] COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics. London: Taylor & Francis, 2011.

[11] ESCOHOTADO, Antonio; ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas: incluyendo el apéndice Fenomenología de las drogas. Madrid: Espasa, 1998. p. 1011-1012.

[12] ROTHMAN, Lily. Death from Drinking: A Short History of Fatal Booze. Time, Disponível em: https://time.com/3665643/deadly-drinking/. Acesso em: 30 maio 2023.

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