A história provou que Joaquim Nabuco (1849-1910) tinha razão: a escravidão de fato perpetuou-se como “a característica nacional do Brasil”[i]. Afinal, a ninguém em sã consciência ocorreria desdenhar das consequências socioculturais e político-econômicas derivadas de séculos de escravagismo. Dito isto, em nada surpreende que tal impostura costume andar de par com a pura e simples negação (no caso dos mais incautos) ou a tentativa de atenuar o caráter estrutural e estruturante do racismo na formação sócio-histórica nacional.
Se se conservar uma postura racional e idônea, o estudo de quatro séculos de escravidão se destacará como tema incontornável para a compreensão de nosso passado e, como não poderia deixar de ser, do nosso presente. Este fato, por si só, recomenda certos cuidados teórico-metodológicos, e não por uma ilusória pretensão de infalibilidade analítica, mas apenas para prevenir-nos contra algumas armadilhas lógicas. Uma entre tantas parece ser fruto de um apressado automatismo sem qualquer respaldo empírico: em face da história do movimento abolicionista, não são poucos os que supõem, ingenuamente, que os defensores da causa da libertação dos escravizados fossem, todos eles, a um só tempo, antirracistas.
Ora, o próprio Joaquim Nabuco – indiscutivelmente um campeão da causa abolicionista – deixou-se tentar, aqui e ali, pelo racialismo pseudocientífico da época, e acabou escrevendo páginas bastante desabonadoras dos negros[ii]. Entende-se muito bem o porquê. Não obstante o liberalismo, em suas origens, tenha representado um fator de democratização política, ele não foi, à partida, uma doutrina democrática: (de)limitação do poder estatal não se confunde com socialização do poder político. Para confirmá-lo, é suficiente a leitura dos clássicos de Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-1755), apenas para ficarmos em dois nomes de repercussão universal…
No que concerne aos nossos intelectuais, há exemplos ainda mais surpreendentes que o do autor de Um Estadista do Império (1897-1899), como o de José do Patrocínio (1853-1905). Personalidade política particularmente intrigante, Patrocínio era negro, filho de um vigário e de uma escrava, mas logrou formar-se farmacêutico e dedicou-se ativamente ao jornalismo. Todavia, poucos ainda recordam o Patrocínio romancista, que esteve entre os primeiros protagonistas da nossa literatura social. Refiro-me ao seu Motta Coqueiro ou a Pena de Morte (1877), baseado na triste história de Manuel da Motta Coqueiro Ferreira da Silva (1799-1855), injustamente condenado por múltiplos homicídios, que renderam-lhe o apelido Fera de Macabu. No romance, ao momento da execução da pena de morte, veja-se como Patrocínio descreveu o carrasco:
“Havia, porém, um homem em que a solenidade singela do ofício divino não produzia a menor impressão. Era o carrasco, o monstro negro, que brincava distraidamente com o seu barrete, revolvendo-o entre as mãos.
Estátua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asfalto do calabouço, argamassado com o sangue que os açoutes lhe tiraram do corpo, o desgraçado folgava talvez na sua brutalidade de fera.
Os brancos fizeram dele uma vítima; proibiram-lhe que afinasse os sentimentos pela compreensão exata da família, da religião e da pátria; devia ser-lhe grato poder vingar-se de um dos seus opressores.
Revolvendo nas mãos o gorro vermelho iludia porventura a impaciência que lhe causava a demora da execução.
Negaças de tigre antes de dar o bote à presa.”
Não é necessário muito esforço mental para perceber que o ilustre abolicionista não era lá muito afeito ao grupo étnico ao qual pertencia. E, se isto não anula o papel desempenhado por Patrocínio na luta pela abolição da escravatura, ao menos nos convida a sermos mais cuidadosos em questões teórico-metodológicas, resistindo ao apelo dos falsos automatismos: abolicionismo não é sinônimo de antirracismo.
Notas de Rodapé
[i]“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma região natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…” In: NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: Editora 34, 2012, pp. 190-191.
[ii] “Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais, da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas de gradual elevação da última”. IN: NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 145.