Fritjof Capra: peripécias e trapalhadas de um inepto profissional

Peripécias e trapalhadas de um inepto profissional

Contam-se quatro décadas desde que veio à lume a primeira edição de Ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente (1982), o segundo livro[i] de Fritjof Capra (1939-), um caricato físico vienense, há muito radicado nos Estados Unidos, que se projetou, no âmbito político, por suas preocupações ecológicas – perfeitamente legítimas, diga-se de pronto, mas que, justamente por sua gravidade, mereceriam um tratamento à altura.

Dividido em quatro seções, cada qual com um número particular de capítulos, totalizando cerca de 400 páginas, o livro é daqueles que prometem mundos e fundos, mas entregam um punhado de migalhas. Pouparei o leitor de uma análise pormenorizada, capítulo a capítulo, pois basta destacar alguns de seus pontos fulcrais, alinhavados desde a abertura, para que se tenha uma ideia do conjunto da obra.

Capra inicia suas divagações com uma grave afirmação, a morte do mecanicismo, lançando a mortalha sobre os corpos de Descartes e Newton. Todavia, para aplacar o desalento dos que sequer tinham intimidade com os defuntos, o autor traz uma Boa Nova, uma visão holística e ecológica, “semelhante às visões dos místicos de todas as épocas e tradições”[ii], justificável, a seu ver, pois estaríamos enfrentando um período de crises múltiplas, de natureza vária, as quais, ao fim e ao cabo, seriam subjacentes a uma crise fundamental: a crise de percepção[iii].

Esta é apenas a primeira das fartas trapalhadas de um autor visivelmente malversado em filosofia, cuja ampla gama de interesses, passeando por diversas áreas do conhecimento humano, é francamente incompatível com sua competência intelectual. Ora, qualquer estudante primário de filosofia da ciência sabe, ou deveria saber, que a percepção é o mais elementar dos processos cognitivos, já que vincula a sensação à identificação de seu objeto. Pela maneira estabanada como utiliza o termo, Capra parece aludir a duas crises concomitantes e complementares: uma ontológica, outra epistemológica. Tanto é assim que sua pretensão de descrever o mundo é dependente de uma perspectiva ecológica (ou holística, ou sistêmica)[iv]. Note-se: ele vem para descrever, não para explicar, mas, como veremos, termina confundindo. É um Chacrinha às avessas.

Capra empreende um embate contra os cientistas, em particular, e os acadêmicos, em geral, os quais, a seu ver, não estariam dando conta dos desafios de nosso tempo. Muitos deles, inclusive, seriam coniventes com os ciclos de crise que estaríamos enfrentando[v]. É contra essa tendência, coletiva e disseminada, que ele opta por recorrer a uma teoria da história novíssima, articulada por Arnold J. Toynbee (1899-1975)… em 1934 (!). Eis a síntese oferecida: “parece que todas as civilizações passam por processos cíclicos semelhantes de gênese, crescimento, colapso e desintegração”[vi].

Toynbee arrancara sua inspiração do modelo teórico desenvolvido por Oswald Spengler (1880-1936), em Decline of the West (1919), porém com um enfoque distinto. Para o historiador britânico, os conflitos intergrupais constituiriam a força motriz de todo desenvolvimento sociocultural. Em linhas gerais, a ideia é a seguinte: de tempos em tempos, as elites dirigentes seriam inevitavelmente confrontadas com os desafios impostos pelas circunstâncias socioambientais em que se achassem inseridas, de que redundaria o impulso para que inventassem respostas efetivas e adequadas, com o objetivo de garantir a conservação de suas sociedades. Sem o perceber, para salvar o mundo do apocalipse, Capra esposou a má e velha teoria das elites.

É de estarrecer que uma tese tão conservadora tenha sido adotada por um intelectual que, para bem ou para mal, se apresenta à esquerda e, além disso, se alça à posição de crítico da estreiteza do meio acadêmico. Qualquer tentativa de elaboração de um único modelo de desenvolvimento histórico, lastreado em interpretação monocausal e que pretenda abarcar toda a história humana, estará fadado ao fracasso. É esse o plano para apreender a complexidade da história humana? Onde estão o vigor intelectual, a mudança de perspectiva e o sistemismo, tão apoteoticamente anunciados às páginas de abertura do livro? Desse mato não sai coelho…

Não por acaso, tal filosofia da história, acolhida com tanta firmeza de propósito, foi empregada para arriscar alguns palpites sobre o futuro: (a) o “inevitável declínio do patriarcado”[vii]; (b) a transição, até o final dos anos 1980, do modelo energético centrado em combustíveis fósseis para o de energia solar[viii]; (c) uma “mudança de paradigma”, concernente aos valores culturais[ix].

As duas primeiras previsões não suscitam maiores comentários; somente que, fosse Capra um futebolista, prestes a bater um pênalti, sequer mereceria o consolo dos que, por um triz, não acertaram: deu as costas para o gol, e chutou na direção contrária. Quanto ao terceiro palpite (c), alguma anotação é aconselhável, pois, da maneira como aparece formulada, pode significar qualquer coisa.

Dessa vez, Capra recorre a Pitirim Sorokin (1889-1968), outra peça antiquária que, recolhida e com algum polimento, traz em seu modestíssimo arsenal teórico. Qualificando-o de grandioso, o esquema do sociólogo russo-americano acerca da evolução sociocultural é sucintamente exposto: tal evolução estaria baseada em ciclos de ascensão e declínio de três sistemas fundamentais de valores, subjacentes a todas as manifestações de uma mesma cultura, o sensualista, o ideacional e o idealístico[x]. E prossegue[xi]:

Assim, os períodos culturais idealísticos tendem a alcançar as mais elevadas e mais nobres expressões dos estilos ideacionais e sensualistas, produzindo equilíbrio, integração e plena realização estética, em arte, filosofia, ciência e tecnologia.

Em primeiro lugar, ao vincular o esquema de Sorokin à noção kuhniana de mudanças paradigmáticas, Capra se inscreve no extenso rol de autores que citam Thomas Kuhn (1922-1996) sem jamais tê-lo lido. Não é necessário dar maiores tratos à bola, pois o tema já foi objeto de uma coluna anterior[xii]. Bastam duas colocações: (1) a noção kuhniana de paradigma não se adequa a domínios não científicos, como pretende o autor; (2) a tese da incomensurabilidade, indissociável da noção de paradigma, veda a hipótese de equilíbrio entre paradigmas concorrentes, o que acaba por incompatibilizar Sorokin e Kuhn.

Em segundo lugar, mesmo que o problema acima pudesse ser contornado, a teoria de Sorokin é exemplo clássico de hipérbole culturalista, dado que a fé, o valor e a crença aparecem como antecedentes necessários de toda estrutura social. A bem da verdade, enquanto esquema sociológico, seu espiritualismo organicista (ou holista) é até consanguíneo com as filosofias da história de Spengler e Toynbee, o que denota alguma coerência de fontes. Entretanto, é importante recordar que Sorokin também não era nenhum poço de candura. A seu tempo, fez coro com as formulações racialistas de Galton (1822-1911), alegando a desigualdade mental entre diferentes raças, entre primitivos e civilizados, e entre as classes sociais[xiii], além de ter sido seduzido pelo determinismo racial de Gobineau[xiv] (1816-1882).

Bem entendido, não se está insinuando que Capra é, na verdade, um lobo em pele de cordeiro; um conservador disfarçado de revolucionário ou um seguidor de postulados racistas. O que ocorre é que ele é de uma ignorância extraordinária em filosofia e nas chamadas ciências humanas, tratando de autores e ideias de maneira pueril, como se tentasse montar um tratado a partir de frases de para-choque de caminhão. A exemplo disso, veja-se o que é dito sobre Marx e Darwin[xv]:

A ênfase dada à luta na teoria de Marx sobre a evolução histórica é paralela à ênfase de Darwin na luta dentro da evolução biológica. De fato, diz-se que a imagem favorita de Marx sobre si mesmo era a de ‘o Darwin da sociologia’. A ideia da vida como uma luta constante pela existência, que tanto Darwin quanto Marx ficaram devendo ao economista Thomas Malthus, foi vigorosamente promovida no século XIX pelos darwinistas sociais, que influenciaram, se não Marx, certamente muitos de seus seguidores.

Em Marx (1818-1883), a classe à que se pertence é determinada pela posição que se ocupa nas relações sociais de produção da vida material. No desenho do modo de produção capitalista, tais relações estariam baseadas em duas classes fundamentais: burguesia e proletariado. Enquanto os primeiros detêm o monopólio dos meios de produção da vida material, esses últimos dispõem tão-somente de sua força de trabalho. De modo a garantir níveis ótimos de competitividade, burgueses necessitam incrementar níveis de produtividade, ampliando sua margem de lucro, o que lhes garantiria uma maior acumulação de capital. Resultado: o interesse material dos burgueses é que o proletariado trabalhe mais, pelo mesmo salário, ou, se possível, por um salário ainda menor. Em contrapartida, o interesse material do proletariado é trabalhar menos, recebendo o mesmo salário, ou, se possível, um salário ainda maior. É isso que se quer dizer com lutas de classes: o antagonismo inamovível entre os interesses materiais das duas classes elementares da sociedade capitalista. Por fim, Marx jamais viu a si mesmo como sociólogo, termo cunhado por Auguste Comte (1798-1857), a quem desprezava; e a despeito de toda admiração que votava a Darwin, o achismo de Capra é infundado.

Sobre Darwin (1809-1882), é verdade que se valeu da expressão de Thomas Malthus (1766-1834) em seu formidável A Origem das espécies[xvi](1859), talvez por ambos pertencerem ao mesmo partido político. Todavia, tal expressão não condensa o modelo de seleção natural, e por uma razão das mais simples: a evolução não é sobre a luta pela sobrevivência, nem mesmo sobre a sobrevivência do mais apto, como muitos insistem em repetir; evolução é sobre reprodução, passar adiante os próprios genes, coisa que, em diversos casos, implica prejuízo à sobrevivência.

Eis que, após tantos piparotes pueris, o autor enuncia o problema que lhe parece central[xvii]:

Nossa cultura orgulha-se de ser científica; nossa época é apontada como a Era Científica. Ela é dominada pelo pensamento racional, e o conhecimento científico é frequentemente considerado a única espécie aceitável de conhecimento. Não se reconhece geralmente que possa existir um conhecimento (ou consciência) intuitivo, que é tão válido e seguro quanto o outro. Essa atitude, conhecida como cientificismo, é muito difundida, e impregna nosso sistema educacional e todas as outras instituições sociais e políticas.

É curioso que um físico teça comentários tão difamatórios à ciência, mas, a julgar pela qualidade dos gráficos do livro e pela total ausência do autor em periódicos de prestígio na área, era mais do que esperado. Na verdade, o cientificismo compreende a concepção realista segundo a qual a pesquisa científica é o melhor caminho para assegurar o conhecimento factual. E mais: nenhum cientista ou filósofo da ciência nega a importância que a intuição desempenha na busca do conhecimento. Em diversos casos, uma intuição ou insight pode constituir o primeiro passo de uma excelente pesquisa. Isto sem contar que o conhecimento e a intuição não são mutuamente excludentes: a razão fortalece a intuição, apesar de não haver equivalência entre senso comum e conhecimento científico.

E qual seria a solução do irracionalista vienense para resolver seus problemas imaginários? Parece piada, mas não é: que adotemos, todos, a filosofia do I Ching. Deixando de lado sua tônica triunfalista, sensível desde as primeiras páginas, o resultado final se assemelha a um mergulho em piscina esvaziada, um completo desastre. Devagar se vai ao longe; divagando não se vai a lugar algum. Neste exemplar da filosofia caprina, por irônico que possa parecer, quase nada é ruminado, mas, em compensação, quase tudo é regurgitado. Sintam-se dispensados da leitura.

Notas de rodapé

[i] Seu debut literário (1975) já havia granjeado certa atenção entre os leitores de best-sellers, pouco ou nada instruídos na disciplina de formação do autor, que, apenas com este primeiro livro, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em todo o mundo. Cf.: CAPRA, Fritjof. O tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. 2ª. Ed. Trad.: José Fernandes Dias. São Paulo: Cultrix, 2013.

[ii] CAPRA, Fritjof. Ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 1ª. Ed. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2021, p. 15.

[iii] Ibid., p. 16.

[iv] Ibid., pp. 16-17.

[v] Em uma especulação das mais absurdas e sem qualquer suporte estatístico, Capra afirma que “metade dos cientistas e engenheiros se dedica à tecnologia de fabricação de armas.” In: Ibid., p. 22.

[vi] Ibid., p. 26.

[vii] Ibid., p. 28.

[viii] Ibid., p. 29.

[ix] Ibid., p. 30.

[x] Ibid., pp. 30-31.

[xi] Ibid., p. 31.

[xii] Confira-se a primeira parte do meu “Alessandro Baratta: uma crítica em dois movimentos”. In: https://www.introcrim.com.br/post/baratta-01

[xiii] “As classes sociais de uma mesma sociedade diferem consideravelmente em suas características físicas, vitais e mentais.” In: SOROKIN, Pitirim. Contemporary sociological theories. New York: Harper & Brothers, 1928, p. 279.

[xiv] Ibid., p. 229.

[xv] CAPRA, Op. cit., p. 34

[xvi] DARWIN, Charles. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida. Trad.: Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2018, pp. 80-97.

[xvii] CAPRA, Op. cit., p. 38.

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