Em alguns dos textos que publiquei recentemente, venho dedicando especial atenção ao tema do punitivismo, tentando aparar as arestas daquilo que consigo apreender do debate criminológico e alinhavar uma possível conceituação, focalizando algumas dimensões ainda inexploradas do fenômeno. Nessa trilha, o hiperencarceramento é uma das mais evidentes manifestações do punitivismo, fato que impõe uma importante questão: a redução de índices de encarceramento é suficiente para que se verifique uma atenuação do punitivismo?
De uns tempos para cá, os Estados Unidos, que há décadas estão na vanguarda do encarceramento de massa, vêm apresentando um decréscimo substancial em seus índices de encarceramento[1]. O fato é digno de celebração, desde que não se esqueça que, em política, o excesso de entusiasmo costuma comprometer o discernimento.
No que respeita às lutas antirracistas, não se pode negar que, desde os anos 1960, diversas foram as vitórias contra a dominação, a discriminação e a opressão raciais. Desmantelou-se o aparato jurídico racialista então em voga, que impunha aos negros, formal e materialmente, um status de subcidadania. E não só: houve um aumento constante na participação de pessoas negras na cultura e na política, ademais da redução dos índices de desigualdade salarial entre brancos e negros. São conquistas significativas, claro está, mas e quanto à seletividade do sistema penal? Nesse aspecto, nada de novo no front: quando comparados com homens brancos da mesma idade, jovens negros ainda têm uma chance 7.5 vezes maior de serem encarcerados[2].
Pensemos na esfera cultural, especificamente na cultura rap, que é abundante e profícua nos Estados Unidos. À moda do que ocorre em outros gêneros musicais, os rappers constroem uma identidade própria, que se traduz em um estilo multifacetado: maneiras de cantar e compor, modos de agir e falar, além de um vestuário próprio (calças baggy e camisetas largas são itens quase obrigatórios). Trata-se de uma cultura subversiva, politicamente consciente, nascida dos guetos e das periferias, o que explica a sistemática perseguição de que seus membros foram alvo.
Por influência dos inúmeros processos de criminalização deflagrados contra rappers, um presídio de Oregon encontrou uma oportunidade de acumulação de capital. Eis os fatores materiais: (a) é perfeitamente esperado que fãs, particularmente os mais jovens, queiram emular o estilo de seus ídolos; (b) alguns desses ídolos estão sob custódia, além de outros tantos anônimos, oriundos dos guetos e das periferias; (c) esses prisioneiros constituem uma força de trabalho ociosa, pronta para ser explorada a custo zero.
Assim nasceu a linha de moda Prison Blues, que empregava a força de trabalho dos presidiários para a fabricação de roupas estilo “gangsta”, lançadas sob o seguinte slogan: “feitas aqui dentro para serem usadas aí fora”[3]. Ocorre que, em uma das propagandas da nova marca, a tentativa de assegurar a qualidade das mercadorias acabou revelando, com a máxima nitidez, toda a monstruosidade do sistema penal. Nela, as calças jeans eram mostradas ao lado de uma cadeira elétrica, ostentando a legenda “às vezes nossos jeans duram mais que os rapazes que os produzem”[4].
Diante disso, há quem sugira que vivemos a ascensão de uma cultura prisional, e não apenas em razão do exemplo acima.
Veja-se o caso da Academia de Polícia de Alpharetta, na Georgia, que oferece uma “experiência prisional” aos que estiverem interessados e possam custeá-la: por algo em torno de $2.000 dólares, homens podem passar o fim de semana na prisão, tratados como se fossem… presidiários! E o que significa ser presidiário? Ser humilhado e maltratado, se submeter a abusos os mais diversificados[5]. O preço está bem distante do módico, além de revelar o caráter patológico daquelas relações de sociabilidade, mas, por vezes, a experiência escapa ao controle dos consumidores[6]:
Alpharetta, Georgia – Estou nu e não estou feliz. Em pouco menos de uma hora, fui submetido a duas das três punições das quais pedi especificamente para ser poupado. Nos formulários que preenchi, semanas atrás, marquei a opção ‘ameaça silenciosa’ sobre a opção ‘ordens gritadas’ e, no espaço ‘pedidos especiais’, expliquei que não queria ficar nu. No entanto, cá estou eu, de pé, na frente de meus três companheiros de prisão – todos vestidos –, de bunda de fora. Um homem muito grande e intimidador, vestindo um uniforme preto da polícia, está gritando comigo. Nós quatro fomos ‘presos’ cerca de uma hora atrás, e eu estou sendo ‘processado’ primeiro: interrogado, tendo minhas digitais colhidas, fotografado e revistado.
Eu quero meu dinheiro de volta.
O testemunho é tão eloquente quanto patético, como são patéticas as jail parties, realizadas em diversas cidades estadunidenses, para comemorar a inauguração de uma nova cadeia: por centenas de dólares, os mais abastados podem passar a noite na nova prisão, em uma festa regada a champanhe e canapés[7].
Todos estes casos justificam a advertência que fiz à abertura do artigo: não nos entusiasmemos excessivamente com a Boa Nova do desencarceramento. A curto e médio prazos, o punitivismo não vai a lugar algum, não apenas por ser essencial à manutenção da ordem capitalista, mas por instalar, nas relações de sociabilidade, uma mentalidade profundamente reacionária – e das mais lucrativas.
É preciso entender que um indicador não é outra coisa senão um sintoma: “uma propriedade observável ou evento visto como uma manifestação de uma propriedade ou evento inobservável”[8]. Em metodologia científica, os indicadores (no plural) constituem a mediação fundamental entre a teorização e os dados empíricos disponíveis ao pesquisador. Por exemplo: (a) maior longevidade e aumento da capacidade real de consumo podem servir como indicadores de aumento da qualidade de vida; (b) agravamento de índices de desnutrição e de mortalidade infantil bem podem indicar um aumento da pauperização.
Tendo em vista o punitivismo entranhado nas relações sociais estadunidenses, a redução de um único índice, por maior que seja sua relevância, não é e nem poderia ser, por si só, indicativo de um câmbio cultural mais abrangente. É dizer: a redução dos índices de encarceramento é condição necessária, porém insuficiente, para que se verifique, neste particular, uma guinada antipunitivista.
Notas de rodapé
[1] A metodologia da pesquisa considerou a totalidade da população carcerária, contemplando cadeias, prisões estaduais e federais. Nesses termos, uma tímida tendência decrescente é verificável desde 2008, mas os últimos anos foram de uma redução espantosa: 2.101.400, em 2018, contra 1.690.000, segundo o dado mais recente. Cf.: http://www.prisonstudies.org
[2] Fairness and inequality. In: WRIGHT, Erik Ohlin; ROGERS, Joel. American society: how it really works. New York: W. W. Norton & Company, 2011, p. 1.
[3] “Made on the inside to be worn on the outside.”
[4] “Sometimes our jeans last longer than the guys who make them.” In: HERIVEL, Tara; WRIGHT, Paul. Prison profiteers: who makes money from mass incarceration. New York: The New Press, 2007, p. 102.
[5] Ibid., pp. 100-101.
[6] SAVAGE, Dan. Academy in Alpharetta, men pay big bucks to pretend they’re in prison. In: https://www.prisonlegalnews.org/news/1999/oct/15/go-directly-to-jail-at-the-academy-in-alpharetta-men-pay-big-bucks-to-pretend-theyre-in-prison/
[7] HERIVEL, op. cit., p. 101.
[8] BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 191.