Jornalismo depende de apuração

Os riscos de uma imprensa irresponsável

A importância da imprensa na sociedade contemporânea não pode ser subestimada – especialmente diante de todos os problemas que temos visto em relação ao fenômeno das fake news. O papel da atividade social do jornalismo na sociedade moderna transcende a simples disseminação de informações[1]; ela atua como um importante mecanismo contra o abuso de poder em todas as suas formas. Essa função fundamental, entretanto, só pode ser cumprida por meio de uma imprensa diligente e responsável, cuja essência repousa na rigorosa apuração de fatos.

Historicamente, a imprensa tem demonstrado uma capacidade singular de influenciar a percepção pública; uma capacidade que frequentemente deu origem a pânicos morais. Tal fenômeno ocorre quando a mídia amplifica certas questões ou eventos de maneira sensacionalista, provocando uma reação desproporcional da sociedade. Stanley Cohen, no clássico Folk Devils and Moral Panics, explica como a imprensa tem o poder de amplificar determinados comportamentos ou grupos, rotulando-os como ameaças à ordem social[2]. Esse processo, muitas vezes caracterizado por uma abordagem sensacionalista, pode desencadear uma reação exagerada da sociedade que não só distorce a realidade, mas também afeta a vida de pessoas, muitas vezes inocentes, perpetuando estereótipos prejudiciais e alimentando o medo irracional.

Exemplos não faltam onde a cobertura tendenciosa ou superficial de eventos conduziu a distorções da realidade, afetando tanto a opinião pública quanto as políticas governamentais. Tomemos o caso da Operação Lava Jato: a cobertura da mídia, frequentemente aceitando acriticamente as versões oficiais, ampliou algumas das maiores injustiças perpetradas pela justiça brasileira. A grande mídia, ao não demonstrar capacidade de verificação independente, contribuiu para a perpetuação de narrativas unilaterais, que mais tarde foram desmentidas devido ao maior escândalo judicial da história brasileira[3].

No cerne dessa discussão está o processo de apuração, um pilar fundamental do jornalismo responsável. Uma apuração eficaz envolve muito mais do que a mera coleta de informações. Ela exige uma abordagem holística que inclui entrevistas detalhadas com fontes primárias, análise criteriosa de documentos e, quando possível, observação direta no local dos eventos – coisa que até mesmo os focas, jornalistas iniciantes, sabem bem[4]. Este processo, embora muitas vezes laborioso e demorado, é essencial para garantir a precisão e a integridade das reportagens.

O problema, contudo, é que frequentemente nos vemos vítimas de outra prática nefasta: a dependência de releases, com verificação adicional praticamente nula. Esse tipo de comportamento não apenas denota uma falta de diligência jornalística, mas também revela uma abordagem preguiçosa e perigosa.

Se essas palavras soam sensacionalistas, consideremos os riscos atrelados a esse tipo de prática. A má apuração e seu jornalismo deficiente não apenas propagam informações falsas ou enganosas, mas também contribuem para a deterioração da confiança do público na mídia e nas instituições democráticas. Quando os jornalistas falham em verificar as informações e fornecer um contexto adequado, inadvertidamente pavimentam o caminho para a disseminação de notícias falsas, prejudicando a reputação da imprensa e comprometendo a integridade da democracia.

Os efeitos de uma má apuração não se limitam à qualidade da reportagem; eles reverberam através da sociedade. Informações imprecisas ou enganosas podem moldar indevidamente a opinião pública, influenciar decisões políticas e causar danos irreparáveis à reputação de indivíduos. Em casos criminais, as consequências podem ser particularmente graves. Uma cobertura jornalística inadequada pode levar a um julgamento público injusto, interferindo no direito à defesa e violando o princípio da presunção de inocência. Em última análise, isso não apenas prejudica os indivíduos envolvidos, mas também mina a confiança no sistema de justiça e nas próprias instituições democráticas. A imprensa deve se reafirmar como um pilar fundamental da democracia, comprometendo-se com um jornalismo que busca a verdade e questiona ativamente as versões oficiais. Isso envolve uma busca incansável por múltiplas fontes e perspectivas, bem como uma contextualização cuidadosa das informações, visando sempre o quadro mais amplo e uma análise crítica dos fatos. A integridade jornalística não é meramente um ideal a ser perseguido, mas uma exigência essencial para a construção de uma sociedade bem informada, justa e democrática. Ao aceitar e enfrentar esses desafios com determinação e integridade, a imprensa não só reforça sua posição como fiscal do poder, mas também desempenha um papel vital na formação de uma sociedade mais consciente e responsável.

Notas de rodapé

[1] HALLIN, Daniel C. Journalism. In: International Encyclopedia Of The Social & Behavioral Sciences. London: Elsevier, 2015. p. 851–856. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/B9780080970868950190. Acesso em: 17 maio 2023.

[2] ​​COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The creation of the Mods and Rockers. London & New York: Routledge, 2002.

[3] OLIVEIRA, Regiane.‘Vaza Jato’, a investigação que obrigou a imprensa brasileira a se olhar no espelho. In: El País. São Paulo, 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-23/vaza-jato-a-investigacao-que-obrigou-a-imprensa-brasileira-se-olhar-no-espelho.html. Acesso em: 30 nov. 2023.

[4] JORGE, Thaïs de Mendonça. Manual Do Foca: Guia De Sobrevivência Para Jornalistas. 2. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2008. p. 97-112.

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