Leviatã, ou: julgando um livro pela capa

Costuma-se dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras; no caso do Leviatã, o ditado demonstra-se tão verdadeiro que merece uma reformulação.

Costuma-se dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras. Como ocorre com invariável frequência com ditos populares, a despeito de toda sabedoria que porventura possam condensar, seu emprego irrefletido pode acarretar representações desastradas, ora pela universalização de casuísmos inexpressivos, ora pela superestimação de imagens vulgares, que não valem mais que um sorriso de piedade.

Entretanto, no caso de Thomas Hobbes (1588-1679), o ditado não apenas de justifica, como se mostra insuficiente, merecendo reformulação: em se tratando do Leviatã (1651), Quentin Skinner[i] (1940-), o lendário historiador contextualista da University of Cambridge, nos fez ver que uma imagem vale mais de quinhentas páginas.

Amplamente avaliado como o maior clássico da filosofia política de matriz anglo-saxã, é desalentador constatar que todas as novas traduções de língua portuguesa (e até algumas edições inglesas) tenham enjeitado a capa cuidadosamente pensada por Hobbes, adornada com um extraordinário frontispício[ii] – fato que, por si só, já teria bastado para despertar a fúria do autor. Em alguns casos, típicos de quando um título é incorporado a uma determinada coletânea de clássicos, a capa foi submetida à padronização; em outros, a gravura original foi modificada ou recortada, contemplando apenas uma fração do todo, de modo a destacar a imagem do Leviatã; em outros ainda, impera a máxima licenciosidade artística, sem o mais mínimo compromisso com a versão original.

E por que diabos é tão importante manter a gravura original? – poderia questionar um crítico irresignado, com a pressa de quem, incomodado com um certo odor de bizantinismo pairando no ar, se apressa em reclamar fundamentações e implicações. É mais do que consabido que Hobbes era um entusiasta do uso de frontispícios em capas de livros, predileção estética que já se achava presente no De Cive (1642), mas que, no Leviatã (1651), atinge o ápice da criatividade, em razão de sua capacidade de representar os contornos centrais e a estrutura mesma da filosofia política defendida na obra. Sendo assim, conservar a capa em sua forma original está longe de ser uma veleidade estilística, e há pelo menos quatro razões que nos permitem afirmá-lo:

(1) O emprego de frontispícios em capas de livros era prática corrente, verdadeira febre de época, e Hobbes se inscreveu, de muito bom grado, nessa tradição. Ele incorpora a clássica divisão pictórica em duas dimensões, uma superior, outra inferior. Todavia, rompendo com as convenções medievais, em que as dimensões eram empregadas como molduras representativas para representar a oposição entre o terreno e o celestial, entre o mundano e o divino (por vezes, aludindo ao juízo final), a escolha de Hobbes é marcadamente moderna: a parte de cima é reservada à constituição do poder legítimo, ao Estado Absoluto, enquanto a parte de baixo, dividida em duas colunas, parece indicar os dois principais inimigos em potencial do Estado hobbesiano: à esquerda, a aristocracia; à direita, o clero. A metáfora visual é cristalina: se não podemos nos ver livres nem de uma e nem da outra, que ambas sejam mantidas abaixo do soberano, subalternizadas por um poder que, ou é absoluto, ou não é poder.

(2) À primeira vista, a dimensão superior pode render a impressão de que estamos diante de uma mera representação do soberano, porém não é disso que se trata. Se repararmos bem, veremos que a cabeça é, sim, uma homenagem antecipada a Carlos II (1630-1685), cujo reinado se deu entre 1660 e 1685, e que teve Hobbes como seu tutor de matemática. Todavia, o que mais nos interessa aqui não é a cabeça, mas o corpo, conformado por um conjunto de pessoas, a quem Hobbes chamara de multidão: é essa multidão que se une para dar forma a uma pessoa artificial, a pessoa do Estado, o Leviatã[iii]. Não se trata, contudo, de uma união marcada pela reverência ou pelo dogmatismo, e sim por uma escolha racional, coisa que o autor da gravura bem soube retratar – e, frise-se, com notável singeleza: entre todas as pessoinhas que compõem a representação do corpo do Estado, não há uma única sem chapéu, pois não há motivo para tirá-lo, uma vez que cada uma delas é parte constitutiva do corpus estatal.

(3) Atentemos agora para o que o Estado tem em mãos: à esquerda, a espada; à direita, o báculo episcopal. É difícil pensar em uma simbologia mais direta para o que Hobbes nos quer dizer: nada está acima do Estado, que detém o poder absoluto, subjugando, inclusive, nobreza e clero. E mais: a dimensão teológica é completamente limada.

(4) Por último e não menos importante, uma belíssima sacada do Professor Skinner. Observemos o modo estranho como a espada e o báculo aparecem na gravura. Se imaginarmos que ambos são linhas e as prolongarmos, veremos que passariam a constituir os dois lados superiores de um triângulo equilátero, cuja base seria, por óbvio, a mesma do frontispício. Do ponto de vista teológico-cristão, o triângulo equilátero é símbolo da Santíssima Trindade; em Hobbes, desde sempre um apaixonado pela geometria, o mesmo triângulo passa a ser símbolo do poder absoluto, agora laicizado.

Poucas vezes alguém elaborou uma imagem tão adequada para representar uma filosofia política sistemática e abrangente. Está certo que, via de regra, não se deve julgar um livro pela capa, porém, no caso de Hobbes, é justamente isso que devemos fazer.

Notas de rodapé

[i] Veja-se, a este respeito, sua extraordinária palestra (Thomas Hobbes: Picturing the State), concedida em 2018, na Uppsala University. In: https://youtu.be/YPxvfoVqqH4

[ii] Da autoria de Abraham Bosse (1604-1676), artista francês e amigo de Hobbes, que, ao que tudo indica, deve tê-lo ajudado no projeto.

[iii] “Uma multidão de homens se torna uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz a pessoa ser uma. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. E não é possível entender de nenhuma outra maneira a unidade de uma multidão.” In: HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 109.

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