Desde que iniciei minha coluna no Introcrim, um dos temas mais recorrentes foi a produção do conhecimento: o processo por meio do qual indivíduos e organizações, que se submetem ao crivo e aos padrões de verificabilidade da ciência, chegam em suas conclusões – ou, para usarmos a expressão mais sintética, o método científico[1]. Se esse é um elemento fundamental para qualquer empreitada científica, seguramente sua importância não está limitada a esse nicho específico.
Entretanto, ao nos aprofundarmos nesse contexto da produção do conhecimento, não podemos nos esquecer do papel desempenhado por outra potente indústria produtora: o jornalismo. Frequentemente reduzido ao status de “mera reportagem”, ele vai muito além de um simples relato. Quando observamos o funcionamento dos processos, rotinas e práticas dessa indústria, percebemos que, embora tenha suas próprias características – com uma diferença significativa na pressão temporal para transformar um evento em uma notícia – ela ainda compartilha muitos dos elementos de inquisição sobre a realidade tipicamente pertencentes à ciência.
Muito embora tendamos a considerar “jornalismo” como uma profissão, essa não é a única acepção adequada ao termo. Para além de uma ocupação específica, o jornalismo pode ser interpretado como uma instituição social própria, relacionada com outras instituições sociais; ou mesmo como uma forma de discurso específica[2]. Para os fins dessa reflexão, entretanto, pode ser particularmente ilustrativo considerá-lo em sua forma essencial: como uma atividade social particular, que envolve a coleta e processamento de informação, para a produção sistemática de uma mercadoria – a notícia[3].
Embora possa parecer apenas uma reprodução simplista da realidade para alguns, a prática jornalística é, na verdade, uma tapeçaria intricada de técnicas e habilidades. Essa concepção reducionista falha ao não reconhecer que a reportagem vai muito além da simples coleta de informações. Ela envolve a transformação desses dados em narrativas que têm significado, contexto e relevância. Cada notícia, por trás de suas palavras, carrega uma escolha deliberada, um olhar crítico e uma interpretação de eventos que são tudo, menos “mera reportagem”.
Não encontramos notícias prontas no mundo. As notícias são esculpidas, moldadas. A realidade, com suas potencialmente infinitas camadas e nuances, precisa ser interpretada com base no acervo de conhecimento e nas ferramentas analíticas do comunicador[4]. Quando um jornalista reporta um evento, ele não apenas relata: ele interpreta, traça sua origem, aponta tendências, e define sua relevância, transformando-o em um produto palatável e compreensível para o público.
Por isso, muitas vezes, ouvimos críticas sobre como a mídia, seja ela nacional ou internacional, manipula notícias, propagando agendas ocultas e até mesmo criando falsas narrativas; e os últimos anos nos mostraram como o problema das fake news não pode ser subestimado. Mesmo assim, muitas vezes o que é rotulado como “manipulação” é, na verdade, a contextualização essencial ao jornalismo. Para tanto, as ciências sociais dispõem de um conceito particularmente útil para compreendermos as características desse processo: o enquadramento.
“O que faz o mundo, para além da experiência direta, pareça natural é um enquadramento da mídia. Certamente, não podemos dar como certo que o mundo retratado é simplesmente o mundo que existe. Muitas coisas existem. A cada momento, o mundo está repleto de eventos. Mesmo dentro de um evento dado, existe uma infinidade de detalhes perceptíveis. Os enquadramentos são princípios de seleção, ênfase e apresentação, compostos por pequenas teorias tácitas sobre o que existe, o que acontece e o que importa”[5].
A ideia de que a produção de conhecimento não acontece ex-nihilio não é novidade nessa coluna; trata-se, como visto, de um processo que depende da transformação de matérias primas em produtos – e, no capitalismo, em produtos qualificados como mercadorias. E, em uma sociedade que compartilha uma série de concepções (frequentemente tácitas) sobre a realidade, é esperado que o produto desse processo interpretativo seja enquadrado por essas concepções compartilhadas[6].
Um exercício propriamente criminológico pode nos auxiliar a compreender essa questão melhor. Citando um estudo de Robert Entman e Andrew Rojecki sobre a representação midiática da população preta nos Estados Unidos, Michael Shudson comenta que, frequentemente, os veículos de comunicação em massa retratam uma porcentagem maior de homens pretos como praticantes de crimes do que as estatísticas policiais[7]. Há, claramente, um enquadramento específico aplicado a esse tipo de evento, que mistifica a realidade ao invés de comunicá-la de forma transparente. Esse, contudo, não é o ponto contencioso; a pergunta que fica é: será que representar as estatísticas criminais de maneira fidedigna representaria um avanço?
Estatísticas criminais, como quaisquer instrumentos de pesquisa, detém certos poderes e não outros, em função de sua estrutura. Se as considerarmos como a fonte de dados a ser utilizada para comunicar a prevalência de crimes em uma determinada sociedade, podemos ignorar suas limitações e sua seletividade inerente. Tais estatísticas são moldadas pelo que é relatado à polícia e como a polícia responde a tais relatórios; considerando como as instituições policiais estão longe de configurarem-se como exemplos procedimentais (ao menos no Brasil), não é de se espantar que os dados por elas produzidas devam ser questionados. Além disso, a complexidade na definição e mensuração do que constitui um “crime”, um “criminoso” ou uma “vítima” também acrescenta mais e mais camadas de complexidade, que impedem a avaliação dessas informações como indicadores precisos da criminalidade[8].
O que esse exemplo demonstra é precisamente a importância – e as dificuldades – envolvidas nessa contextualização. Se dependermos estritamente das estatísticas criminais, podemos inadvertidamente perpetuar um viés sistêmico contra grupos étnicos marginalizados, particularmente homens pretos, visto que as taxas de prisão muitas vezes os superrepresentam.
A realidade detém características objetivas, que independem da nossa interpretação; mas o processo de conhecimento para nos aproximarmos dessas características passa, necessariamente, por etapas interpretativas. É assim na ciência, e muito mais no jornalismo, precisamente por sua maior velocidade e seu menor parâmetro de confiabilidade. A realidade é complexa, e a notícia, por sua natureza, é uma simplificação. Mas nem toda simplificação é equivalente. Como fazemos referência não apenas a jogos de linguagem ou signos, mas sim a referentes externos, objetivos, sempre temos como avaliar a adequação de uma representação ao que esta pretende representar[9].
Em um mundo constantemente alimentado por informações, é fundamental entender a complexidade da produção do conhecimento, seja na ciência ou no jornalismo. Ambas as disciplinas partilham a missão de traduzir a realidade para o público, embora operem sob diferentes pressões e padrões. A realidade, por sua natureza multifacetada, exige discernimento, contextualização e rigor ao ser apresentada. A ciência busca a precisão, enquanto o jornalismo busca rapidez e relevância. Ambos, contudo, enfrentam os desafios de interpretar corretamente, evitando simplificações equivocadas. O jornalismo não é apenas “mera reportagem”, mas uma tentativa constante de modelar o caos do mundo em narrativas compreensíveis. Críticas à mídia, muitas vezes, refletem um mal-entendido sobre essa tarefa hercúlea; outras tantas vezes, são absolutamente justificadas, pela produção de verdadeiras distorções sobre a realidade.
Todo conteúdo jornalístico é fruto de decisões sobre o que incluir, o que excluir e como apresentar a informação, em um esforço de torná-la acessível e relevante ao público. Enquanto é legítimo questionar e criticar certos enquadramentos, é simplista rotular toda contextualização como manipulação. A mídia, ao tentar moldar a infinita complexidade da realidade em narrativas coerentes e palatáveis, invariavelmente recorre ao enquadramento. Portanto, embora seja imperativo reconhecer um nível mais básico de enquadramento ideológico, parece importante diferenciar entre enquadramentos que distorcem a realidade e aqueles que buscam apresentá-la de forma mais compreensível. A compreensão dessa distinção permite uma avaliação mais informada e construtiva da mídia e do jornalismo em sua função social.
Notas de rodapé
[1] KRUG, Ricardo Alves. Por onde começo minha pesquisa? In: Introcrim. Disponível em: <https://www.introcrim.com.br/por-onde-comeco-minha-pesquisa-metodologia/>. Acesso em: 14 ago. 2023.
[2] HALLIN, Daniel C. Journalism. In: International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. Elsevier, 2015, p. 851–856. Disponível em: <https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/B9780080970868950190>. Acesso em: 17 maio 2023.
[3] Idem.
[4] ARBEX JR., José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo, SP: Casa Amarela, 2001. p. 107.
[5] GITLIN, Todd. The whole world is watching: mass media in the making & unmaking of the New Left. New ed. Berkeley, Calif.: University of California Press, 2003. p. 6.
[6] BECKER, Samuel L. Marxist approaches to media studies: The British experience. Critical Studies in Mass Communication, v. 1, n. 1, p. 66–80, 1984. Disponível em: <http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/15295038409360014>. Acesso em: 2 out. 2023.
[7] SCHUDSON, Michael. The sociology of news. 1. ed. New York: Norton, 2003. p. 36.
[8] NEWBURN, Tim. Criminology. London: Routledge, 2017. p. 55.
[9] ATKIN, Albert. Peirce’s Theory of Signs. In: ZALTA, Edward N. (Org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Metaphysics Research Lab: Stanford University, 2022. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/fall2022/entries/peirce-semiotics/>.