Através do Justa Causa, recebo constantemente diversos casos que versam sobre questões raciais. Isso porque, sou advogada criminalista, pesquiso e sou professora, coordenando um grupo de estudos voltado para o tema. Percebo diariamente o quanto ainda precisamos avançar na luta antirracista através dos infames casos que me são enviados, e daqueles que tomamos conhecimento através de notícias. Penso que esta é apenas a ponta de um iceberg, cuja profundidade é imensa: diversos casos ocorrem diariamente e sequer tomamos conhecimento.
Como mulher branca, percebo que a maioria das pessoas que se dizem antirracistas o fazem apenas para “ficar bem na fita”. As pesquisas vão ao encontro do que verifico a minha volta: de acordo com o Instituto Locomotiva, 84% das pessoas entrevistadas compreende que o Brasil é um país em que há racismo. No entanto, apenas 4% delas se vê como “uma pessoa que tem preconceito”[1]. Esta pesquisa foi feita há apenas dois anos e, ao levar em consideração pessoas não negras, 74% pensa que há racismo no Brasil (eu gostaria de saber em que bolha vivem os 26% restantes).
De fato, há pessoas que pensam que o racismo ocorre apenas através de uma ação escancarada do agressor (como Jair Bolsonaro, que diz que “racismo é impedir o negro de fazer alguma coisa”). O racismo nem sempre ocorre desta forma. Ele pode, por exemplo, se manifestar através de olhares, reprovando a simples existência de uma pessoa negra em determinado lugar. Também pode ocorrer através de “indiretas”, como o caso retratado por Renato Duarte, o Rezzito, em suas redes sociais, em que uma mulher branca, ao ver que um homem negro entrava no elevador, disse: “olha, o elevador de serviço é o outro”. Pode vir também, como já escrevi em outras colunas ao tratar do racismo recreativo, através de “piadas” feitas por ditos “humoristas”[2].
No dia 13 de maio, participei do Circuito Herança Africana, percorrendo com um guia do Instituto Pretos Novos, a chamada Pequena África, incluindo o Cais do Valongo, que em 2017 foi alçado a Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, por ser o único vestígio material do desembarque de africanos escravizados. Nossa memória pulsa, os resquícios dos quase 400 anos de escravidão persistem. E precisamos analisar: qual o legado que este sistema – à época legal – deixou para pessoas brancas? A professora Cida Bento reflete: “fala-se muito em herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para pessoas brancas”[3]. Bento inclusive já ouviu de feminista branca, líder sindical a seguinte frase: “eu não fui escravocrata, eu não tenho legado”[4]. Esta frase, similar à de Bolsonaro no programa Roda Viva, em que ele diz: “Eu não escravizei ninguém na minha vida”[5] reflete o que é a branquitude.
Branquitude não é o oposto de negritude, ela é um sistema de opressão e, como bem explica Robin DiAngelo[6], não é possível oprimir sem que outros grupos sejam erguidos. Além de uma posição de vantagem, a branquitude, nos dizeres de Lia Schucman, é “um lugar de se apropriar de significados compartilhados socialmente e incorporar, a ideia de supremacia branca”[7]. Deivison Faustino cita Frantz Fanon, que ensina didaticamente: a branquitude é filha legítima do colonialismo[8].
Com a assinatura da lei áurea, vieram – como já tratamos em textos anteriores – políticas para controlar corpos negros, como o Código Penal de 1890, que criminalizava a capoeira, por exemplo. O racismo científico chega no Brasil, com ideias de que pessoas brancas seriam superiores às negras e assim a sistemática de desumanização prosseguia. Apesar de pessoas brancas como Bolsonaro terem a ousadia (para dizer o mínimo) de indagar “que dívida histórica?”, fato é que o privilégio branco existe. Sueli Carneiro[9] cita Charles Mills, que ensina que existe um contrato racial em vigor, assentado em diversos eventos históricos desencadeados pelo colonialismo. Um contrato que existe e privilegia pessoas brancas, quer elas queiram ou não. Agora, nem todas as pessoas brancas são signatárias deste contrato racial.
Angela Davis ensina que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. É preciso ter consciência de que, se você é uma pessoa branca, automaticamente já tem privilégios em uma sociedade racista. Cabe a você agir para não perpetuar o pacto da branquitude, através do que DiAngelo[10] chama de solidariedade branca, um “acordo tácito entre brancos para protegerem a vantagem branca e não causar desconforto racial a outro branco”. Para ilustrar, a autora dá um exemplo: em um jantar, o tio conta uma “piada” racista e ninguém o enfrenta para não estragar o jantar.
Há pessoas brancas que se dizem antirracistas, mas não praticam qualquer ação efetiva. Permanecem em sua zona de conforto, dentro da sua confortável bolha de privilégios e escolhem não se posicionar. Não adianta colocar um quadrado preto em “protesto” quando do assassinato de George Floyd no instagram, para as “pessoas verem que você sente muito” e não praticar a escuta ativa, ser contra cotas, dizer que “todos são iguais”, se dizer um “racista em desconstrução” e não procurar ler para ter o devido letramento racial. Não adianta nada fazer e colocar a culpa no racismo estrutural. Quais são as suas ações diárias? O que você faz quando a caneta está na sua mão para ratificar o contrato racial?
Notas de rodapé
[1] Pesquisa disponível em: https://exame.com/negocios/no-brasil-84-percebe-racismo-mas-apenas-4-se-considera-preconceituoso/ Acesso em 17 mai. 2023.
[2] Não é piada quando o “humorista” diz “negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim”. É racismo recreativo.
[3] BENTO, Cida. Pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das letras, 2022. p. 23.
[4] SCHUCMAN, Lia Vainer; Ibirapitanga (orgs.). Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo. São Paulo: Fósforo Editora, 2023. p. 32.
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lDL59dkeTi0 . Acesso em: 17 mai. 2023.
[6] Idem, p. 34.
[7] Idem, p. 56.
[8] Idem, p. 73.
[9] Idem, pp. 43-44.
[10] DIANGELO, Robin. Não basta não ser racista, sejamos antirracistas. São Paulo: Faro Editorial, 2020, p. 83.