Na batalha das ideias criminológicas, Mario Bunge é leitura obrigatória!

De algumas décadas para cá, manifesta-se, entre nós, uma vigorosa tendência de recusa ao eurocentrismo (a assimilação acrítica e imediata de teóricos europeus para dar conta de realidades e contextos que lhes são alheios). A tendência é perfeitamente legítima, claro está, mas há que fazer as devidas mediações, pois, se o intelecto crítico não é lá muito afeito aos expedientes reducionistas, que constrangem a complexidade do real à disciplina dos binarismos estanques, não é necessário escolher entre eurofilia ou eurofobia. Dito de outra maneira, em face da produção local de conhecimento, a reação à europeização apaixonada não implica aversão apriorística a tudo aquilo que vier da Europa. E mais: considerando-se a escassez de tempo e a infinitude de títulos por conferir, não se pode perder de vista o conselho inestimável do General Nelson Werneck Sodré (1911-1999): temos de aprender a discernir entre o essencial e o acessório.

Entre os essenciais do nosso tempo, destaca-se, desde a América Latina, o nome de Mario Bunge[i] (1919-2020). Filósofo e físico argentino, filho de pai médico e deputado socialista e de mãe enfermeira, imigrante alemã, Bunge teve de deixar sua pátria, no curso do golpe de 1966, transferindo-se para o Canadá, onde assumiu a Cátedra de Lógica e Metafísica da McGill University, uma das mais prestigiadas do mundo, em que se manteve até os seus últimos dias.

De temperamento grave e semblante sisudo, era, não obstante, um homem afável e carinhoso. Em certas ocasiões, muitas delas documentadas em vídeo, observa-se um curioso fenômeno de transfiguração, motivado por estímulos externos: era então que o cenho franzido era suplantado por um sorriso adorável, e tinha-se a rápida impressão de que estávamos assistindo à palestra de um menino quase centenário. É que, na verdade, Bunge conservou por toda a sua vida um instinto crítico e uma vontade de saber, que, desde a mais tenra infância, são experimentados por todos nós. Entretanto, sempre nadando contra a corrente, os anos foram passando, somando-se em décadas, mas Bunge não envelheceu, pois, por paradoxal que possa parecer, jamais deixou a fase dos porquês.

De sua obra vastíssima, com centenas de publicações, o essencial está disposto ao longo dos oito volumes do seu monumental Tratado de Filosofía Básica (1974-1989), infelizmente ainda indisponível em língua portuguesa. Trata-se, possivelmente, do último grande sistema filosófico a ser proposto no século XX e, ao que me consta, ainda sem equivalente no XXI. A maneira mais conveniente de resumi-lo é abordando os cinco pilares fundamentais em que está assentado: (a) realismo, (b) materialismo, (c) sistemismo, (d) cientificismo e (e) humanismo.

(a) Realismo. Contrário ao idealismo subjetivo de Kant (1724-1804), para quem o mundo não seria outra coisa senão o conjunto de todos os fenômenos[ii] (i.e. de todas as aparências), e do construtivismo ontológico dos pós-modernos, que põem em suspeição a distinção entre aparência e realidade[iii], o realismo ontológico de Bunge afirma que a realidade é objetiva, independendo, portanto, da percepção individual de tal ou qual agente. Pode-se negar, com base em estrita experiência sensorial, que a Terra gire em torno do sol, e pur si muove

(b) Materialismo. Todas as partes constituintes do universo real são materiais, entes intrinsecamente mutáveis, já que dotados de energia, que é a propriedade elementar da matéria[iv].

(c) Sistemismo. Tudo aquilo que existe ou é um sistema ou é parte de um sistema. À moda da cosmovisão marxiana, segundo a qual a vida social é uma totalidade, um complexo de complexos, o sistemismo ontológico entende que o mundo é um sistema de sistemas, complexificando, assim, o clássico dilema entre individualismo e holismo[v]:

Todas as três perspectivas encontram-se em evidência em todo ramo da filosofia, embora, como de costume, a ontologia se encontra na raiz. O individualismo ontológico sustenta que a realidade é uma coleção de indivíduos; o holismo, que ela é um todo indivisível, ou que o todo é ontológica e epistemologicamente anterior às suas partes; o sistemismo, que a realidade é um sistema analisável em composição, ambiente, estrutura e mecanismo.

(d) Cientificismo. Por má-fé ou por questão de pura ignorância, o cientificismo é invariavelmente identificado com o positivismo: no primeiro caso, por desonestidade intelectual, no segundo, por não se saber nem o que é ciência, nem o que é positivismo. Com efeito, emprega-se comumente o adjetivo “cientificista” para designar deficiências metodológicas que seriam mais bem designadas pelo termo “reducionista”. O cientificismo é, na verdade, a convicção de que a ciência é a forma mais adequada, bem-sucedida e segura de conhecer o mundo[vi]. Ao negá-lo, adere-se ao irracionalismo.

(e) Humanismo. Do ponto de vista epistemológico, o humanismo afirma que “é possível e desejável descobrir a verdade acerca do mundo e de nós próprios apenas com a ajuda da experiência, da razão, da imaginação, da criatividade e da ação”[vii].

Para uma criminologia que se leve a sério, um autor da estirpe de um Mario Bunge é referência obrigatória, uma vez que o criminólogo consequente: (a’) se ocupa da realidade objetiva, que não está submissa às fronteiras acanhadas da subjetividade; (b’) trata de seres e processos materiais, apreendidos em seu caráter inexoravelmente mutável; (c’) investiga um sistema jurídico-penal que, apesar de estar inserido em um sistema ainda mais complexo, necessita ser esquadrinhado em sua composição, ambiente, estrutura e mecanismos; (d’) critica o irracionalismo punitivo a partir da pesquisa científica; (e’) reafirmando seus compromissos humanísticos.

Isto posto, algumas indicações de leitura. Para iniciantes, recomendo que comecem por Cápsulas[viii] e 100 ideas[ix] – simples, mas sem simplismos, além de extremamente divertidos; aos intermediários, Caçando a Realidade e Matéria e Mente – muito mais aprofundados e desafiadores, mas de esplêndida leitura; aos avançados (e com disposição), obviamente, o Tratado de Filosofía Básica. É evidente que há outras dezenas de livros disponíveis, tratando de temas que variam da lógica à política, da sociologia à ontologia, do método à história das ideias. Deixo essas escolhas secundárias a cargo do estimado leitor. Como sempre, não há tempo a perder, pois há muito que ler.

Notas de rodapé

[i] Às constantes indagações acerca da pronúncia apropriada (“Bungue ou Bunje?”), podemos ficar descansados; a resposta do Mestre era sempre a mesma: “como preferirem”.

[ii] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª. Ed. Trad.: Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 415.

[iii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2010, p. 331.

[iv] BUNGE, Mario. Caçando a realidade: a luta pelo realismo. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010, pp. 34-36.

[v] BUNGE, Mario. Matéria e mente: uma investigação filosófica. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2017, p. 278.

[vi] “Tudo o que é cognoscível é mais bem estudado cientificamente.” In: BUNGE, Mario. Matéria e mente: uma investigação filosófica. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2017, p. 334.

[vii] BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 178.

[viii] BUNGE, Mario. Cápsulas. 1ª. Ed. Barcelona: Gedisa, 2003.

[ix] BUNGE, Mario. 100 ideas. 1ª. Ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2011.

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