A gargalhada carnavalesca de John Locke

Para Maria Francisca de Miranda Coutinho, que me instrui, já há uma década, sobre as armadilhas da filosofia política.

Pelas ruas do Rio de Janeiro – e, ao que consta, de todas as cidades com alguma tradição neste domínio –, os foliões fizeram e protagonizaram, uma vez mais, a maior festa popular do mundo. Após dois anos de hiato plenamente justificável, este Carnaval de 2023 trouxe de volta a memória de um outro, já mais que centenário: o de 1919, que se seguiu ao ocaso da (mal chamada) gripe espanhola[1]. Da epidemia de 1918 à pandemia de 2020, o ineditismo da tragédia sempre foi sucedido por uma folia sem precedentes. E não se trata de escapismo alienante, como sugere um certo senso comum, e sim de uma congregação que esgarça as tensões e contradições que marcam a vida social brasileira.

Está certo que se trata de uma festividade nacional, mas a pluralidade de nuances culturais, cada qual a seu tempo e espaço, deve soar o alerta contra os impulsos generalizantes, que supõem, a priori, que as particularidades locais se estendam, imediatamente, a outras paragens. Isto posto, já que “quem nasce no Rio já vem com meio Carnaval andado”[2], limitemo-nos a este fascinante pedaço do país.

Onde todos os caminhos levam ao centro, convém lembrar que o Rei Momo sempre ajudou aos que cedo madrugam. É por isso que muitos despertavam bem cedinho, antes mesmo que o sol despontasse no céu, revelando, em um novo ciclo, toda a beleza da Cidade Maravilhosa.

Logo no primeiro dia, as ruelas de Santa Teresa já se achavam apinhadas de gente de todas as idades, classes, etnias, credos, gêneros e orientações sexuais; gente que ostentava, desinibidamente, toda sorte de fantasias e adereços que se possa imaginar: algumas, decididamente mais econômicas, expunham as intimidades, sem quaisquer concessões ao moralismo bolorento; outras, visivelmente mais fartas e ultrajantes ao clima escaldante, destapavam apenas o rosto. Fosse como fosse, todos foram democraticamente favorecidos pela benevolência dos espectadores, que, do alto de suas sacadas, atiravam água gelada para aplacar o calor dos foliões.

De maneira geral, todos cumpriram com as principais recomendações de segurança pessoal, motivo pelo qual as “doleiras” e pochetes suspenderam o império das bolsas e mochilas. Os peritos em moda até podiam torcer o nariz, emitindo parecer em contrário, mas tiveram de admitir que os utensílios, a despeito de violarem alguns mandamentos sagrados, se sobressaem em matéria de praticidade e utilidade. E isto deveria bastar.

Nos blocos de rua, a bateria e o samba-enredo são componentes essenciais, mas dado que a farra depende de uma massa espontânea de agregados, a boa evolução foi garantida pelas dezenas de carrinhos alegóricos, feitos de metal e preenchidos de isopor, que desembestavam, aqui e ali, na tentativa de suprir a sede insaciável dos carnavalescos. Três latinhas por 12 reais, um latão por 8 ou 10 (a depender da marca), ou qualquer outra bebida rotineira – inclusive água mineral, cujo consumo, segundo atestam os especialistas, não é prejudicial.

Mas nem só de “bebestíveis” vivem os foliões. No percurso, ninguém mais estranha o aroma peculiar, os frascos de vidro que remontam ao início do século passado ou os pacotinhos mais que suspeitos, passando de mão em mão, em alguns grupelhos. Nem os policiais no entorno fazem caso. No concerto dos foliões, ratificou-se a ideia de que Carnaval é, em larga medida, subversão de costumes, normas e padrões. Por conseguinte, ao ignorarem as determinações impostas pela Lei de Drogas, reafirmou-se, tacitamente, aquela bela epígrafe de Antonio Escohotado (1941-2021)[3]:

Da pele para dentro começa a minha exclusiva jurisdição. Escolho eu o que pode ou não cruzar essa fronteira. Sou um Estado soberano, e as bordas da minha pele são muito mais sagradas para mim do que os limites políticos de qualquer país.

Quanto às situações de assédio, infelizmente seguem ocorrendo, se bem que talvez em menor número, quando comparadas, digamos, com os índices da década anterior. Seja como for, tais episódios, outrora naturalizados e cantados em verso, atualmente se beneficiam, cada vez menos, da conivência dos espectadores, passando a ser amplamente repudiados como uma forma inadmissível de violência. A festa é da carne, mas o consentimento é indispensável. Eis o sentido por detrás da máxima entoada pelos feminismos de todos os matizes: “Meu corpo, minhas regras”.

Observe-se que há um nítido paralelo entre os dois exemplos: a reafirmação da liberdade individual em face da possível intervenção de terceiros. Argumenta-se que o Estado não tem o direito de se intrometer na escolha individual sobre o uso de tal ou qual substância; de igual sorte, entende-se que o consentimento é fronteira inamovível de toda e qualquer prática afetiva. Ambos dizem, em suma: “Do meu corpo para dentro, a jurisdição é minha”.

Estamos diante de um milagre: a esquerda, em suas mais variadas correntes e tendências, percorre estas linhas e, assumindo o caráter perfeitamente arrazoado da proposição, firma um pacto político. Todos dão as mãos, se abraçam fraternalmente, e hasteiam uma bandeira em que se lê: “Meu corpo, minhas regras”.

É então que, do outro lado do Atlântico, em uma terra quase sempre cinzenta, onde jamais se ouviu falar em um Carnaval digno de referência, uma gargalhada triunfal prorrompe diretamente das catacumbas de All Saints Churchyard (Essex). O riso histérico e francamente tenebroso persiste por alguns poucos segundos, ecoando por todos os lados, até que cessa, inadvertidamente, dando lugar à sentença derradeira: “Finally… I won…

Godfrey Kneller: Portrait of John Locke
Godfrey Kneller: Portrait of John Locke

Na esteira dos diferentes jusnaturalismos que viriam a conformar, pelo filão contratualista, a filosofia política moderna, John Locke (1632-1704) granjeou posição de merecido destaque. Para os jusnaturalistas, os seres humanos possuem um conjunto variável de direitos naturais, em que frequentemente aparecem a propriedade, a vida e a liberdade. Contudo, a inovação lockeana reside no fundamento mesmo de seu jusnaturalismo, a ideia de que cada ser humano tem, sobre si mesmo, um direito de propriedade (self-ownership). É desse fundamento que decorre não apenas o direito de se apropriar de outras coisas pelo trabalho, mas também a (de)limitação do poder estatal: o soberano tem direitos, mas não é dono de seu povo, cujos direitos naturais antecedem à própria instauração da sociedade civil[4].

[E]m Locke, os direitos pessoais provêm da natureza, como dádiva de Deus, e estão longe de dissolver-se no pacto social. (…) Ao sacralizar a propriedade como direito natural anterior à associação civil e política, Locke realçou uma tendência que já tinha quinhentos anos de idade: a fusão pós-clássica de ius e dominium, de direito e propriedade. Entronizando o direito de resistência, ele ampliou o princípio individualista da vontade e do consenso. E este, em lugar de tradição, é a principal característica da legitimidade em política liberal.

Bem entendido, o objetivo não é demonizar este ou outro mote político, ainda mais em se tratando de um que vem cumprindo uma importante função político-emancipatória. Ao contrário, a reflexão que se propõe é de outra natureza, enfocando os fundamentos que orientam as posições políticas de quem tem como horizonte declarado a emancipação humana. Nesse sentido, pergunta-se: é possível pensar a defesa da dignidade sexual para além de um fundamento intrinsecamente liberal? E quanto à questão do uso de substâncias tornadas ilícitas? Pode-se defender a descriminalização ou legalização sem, para tanto, reproduzir o discurso lockeano? Nossos corpos poderiam ser representados por um conceito que rompa com a ideia de propriedade privada? Em suma, a pergunta que se impõe aos revolucionários é a seguinte: é razoável que um programa político de esquerda tenha um fundamento liberal?

Pensemos com calma; temos um ano até o próximo Carnaval…

Notas de Rodapé

[1] CASTRO, Ruy. Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 22.

[2] A frase é atribuída a Carlinhos Niemeyer (1920-1999). In: CASTRO, Ruy. Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 45.

[3] ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. Madrid: Espasa, 2007, p. 1173.

[4] MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. São Paulo: É Realizações, 2014, pp. 72-73.

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