Em 1939, ano em que começou a Segunda Guerra Mundial, Hollywood produziu diversos filmes que, até hoje, são aclamados pela crítica e público, como A mulher faz o homem, O paraíso infernal e O mágico de Oz. Em 1940, na cerimônia do Oscar, um deles levou a estatueta de melhor atriz, atriz coadjuvante, diretor, roteiro, edição e filme: ...E o vento levou.
O filme, que romantiza a Guerra de Secessão, período de 1861 a 1865, em que Estados do Norte e do Sul entraram em confronto, tendo como principal pauta a libertação dos escravizados, trouxe Hattie McDaniel no papel de Mammy.
Em inglês, “mommy” é uma forma carinhosa de se referir à figura materna. Troca-se a vogal “o” pela vogal “a”, que seria a pronúncia utilizada por pessoas negras nos estados do sul dos Estados Unidos no século XIX. Mammy vem dos diários escritos por pessoas brancas no pós Guerra de Secessão e seria aquela mulher negra, gorda, com seios fartos (muitas vezes foi ama de leite de diversas crianças brancas) e escravizada – mas que seria “como se fosse da família” (teci críticas sobre o termo no texto da última coluna). Ela serve a todos, não tem a sua própria vida. Ela é a fiel escudeira, leal à família branca.
Na época em que o filme foi rodado, as leis segregacionistas Jim Crow vigiam no país. Nos estúdios, o Código Hays (Motion Picture Production Code), que vigorou entre 1930 e 1968, impunha diversas normas “morais”, dentre elas, a proibição a qualquer representação ou apologia à miscigenação. Isto influenciou de forma direta nos papeis que eram atribuídos a mulheres negras e ao reforço de estereótipos como o de “Mammy”.
Você imaginou participar de uma grande produção cinematográfica e não ser convidada para a estreia? Foi o que aconteceu com McDaniel. O então considerado galã Clark Gable, que interpretava Rhett Butler no filme, disse que não compareceria à première[1].
Indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, McDaniel encontrou diversos obstáculos para comparecer à cerimônia. Ela precisou pedir uma autorização ao The Ambassador Hotel, em L.A., para entrar no prédio, já que uma pessoa negra poderia entrar apenas se fosse funcionária do hotel ou empregada de hóspede. Durante a premiação, sequer pôde assistir ao lado de seus colegas brancos de cena. Foi barrada do salão e esperou do lado de fora o anúncio. Apenas quando leram o seu nome como vencedora, teve o acesso liberado até o palco[2].
nNormalmente, quando uma atriz ganha uma premiação de prestígio como o Oscar, passa a ser chamada para diversos filmes e seu cachê aumenta. Não foi o que aconteceu com McDaniel. Continuava a interpretar a “mommy” e recebia um valor abaixo das atrizes brancas. Faleceu aos 57 anos e sequer pode ser enterrada no cemitério em que tinha escolhido, por conta, mais uma vez, da segregação.
Apenas 14 anos depois deste Oscar, pela primeira vez um ator negro subiria ao palco para receber a estatueta de melhor ator: Sidney Poitier, por sua interpretação em Uma voz nas sombras. Ele, que já havia sido indicado por seu trabalho em Acorrentados no final da década de 50, finalmente leva a estatueta. Em seu discurso, ele disse: “Foi uma longa jornada até aqui…”
Parece que a Academia, de tempos em tempos, se “lembrava” de que não existem apenas atores brancos. Entre 1963 e 1982, por exemplo, apenas sete pessoas negras foram indicadas ao Oscar, vencendo em 1983 a categoria de ator coadjuvante Louis Gossett Jr., por seu papel em A força do destino.
Em 1989, Denzel Washington vence a categoria de melhor ator coadjuvante, por sua interpretação em Tempo de Glória. É algo bastante emblemático percebermos que, a maior conquista até então foi o fato de, em um intervalo de 6 anos, dois – repito, DOIS – atores negros conquistarem uma estatueta em uma categoria da premiação. Em uma entrevista[3], Gossett Jr. confessa a sua decepção com a indústria, já que não foi chamado de imediato para novos trabalhos e não ganhou uma fortuna, apesar de ter faturado um Oscar, um Emmy e dois Globos de Ouro.
A década de 90 repete o “feito” da anterior: Whoopi Goldberg – indicada em 1986 por A cor púrpura – leva a estatueta de melhor atriz coadjuvante, por sua interpretação em Ghost e Cuba Gooding Jr. a de melhor ator coadjuvante, em 1997, por Jerry Maguire. n
Novo milênio… viriam também novos tempos em Hollywood? Em 2002, pela primeira vez na história do Oscar, um ator negro e uma atriz negra levam os prêmios de melhor ator e atriz: Halle Berry (A última ceia) e Denzel Washington (Dia de treinamento). Ver a alegria de Sidney Poitier, vibrando com a conquista de Washington e ele com a de Poitier[4], que foi o primeiro negro, naquela mesma noite, a receber um Oscar honorário pelo conjunto da obra.
Jamie Foxx subiria ao palco para pegar a estatueta de melhor ator em 2005, por Ray (Don Cheaddle concorria também, por Hotel Ruanda). Em seu discurso[5], ele disse: “Let’s live this African american dream”. Ele ainda menciona em seu discurso pessoas como Oprah, agradecendo por apresentá-lo a Sidney Poitier e Halle Berry (“eu vejo Oprah e Halle na plateia e só quero dizer seus nomes”). É o ubuntu: “eu sou porque nós somos”. Neste mesmo ano, Foxx foi indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por Colateral. Venceu Morgan Freeman (que já tinha sido indicado 4 vezes antes), por Menina de Ouro.
Em 2006, Forest Whitaker leva a estatueta de melhor ator, por O último rei da Escócia e Jennifer Hudson a de atriz coadjuvante, por Dreamgirls. Mo’nique leva em 2010 a estatueta de melhor atriz coadjuvante por Preciosa. Ela recebeu a estatueta com flores no cabelo, como uma forma de reverenciar Hattie McDaniel, que havia feito penteado similar quando da sua premiação. Ela em seu discurso[6] homenageia a atriz e agradece à Academia, por não ser apenas sobre a performance, mas sobre política também. Octavia Spencer em 2011, leva a estatueta por Histórias Cruzadas e em 2014, Lupita Nyong’o por 12 anos de escravidão.
Era preciso que a questão racial fosse colocada em holofote. Os indicados são escolhidos por mais de 6 mil membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, composta em sua maioria por homens brancos acima de 50 anos e isto, inegavelmente, reflete na seleção. Em décadas de premiação, podemos contar nos dedos o número de atores e atrizes negros que levaram a estatueta. Assim, em 2016, a campanha Oscars so white iniciada no final do ano anterior – que teve a participação de astros como Will Smith e Jada Pinkett-Smith e do diretor Spike Lee – denunciava a ausência de, pelo segundo ano seguido, atores e atrizes não brancos nas quatro categorias. Na ocasião, um mosaico com a foto dos atores e atrizes brancos indicados foi divulgado e a hashtag bombou nas redes sociais.
Apesar do comprometimento da Academia em mudar este cenário branco, na prática pouco foi realmente feito. Mahershala Ali, que venceu em 2017 o Oscar de melhor ator coadjuvante por Moonlight, volta ao palco para receber a estatueta em 2018, por Greenbook. Em 2019, Regina King sobe ao palco para receber a estatueta de melhor atriz coadjuvante por Se a rua beale falasse. Em 2020, no entanto, não houve sequer indicação para as estatuetas de ator e atriz coadjuvante e de melhor ator. Em 2022, Will Smith ganha o Oscar de melhor ator, por King Richard.
É de fato inconcebível que, em 95 anos de Oscar, por diversos anos pessoas negras sequer sejam indicadas para a premiação. Você se lembra da primeira atriz branca a ganhar o Oscar de melhor atriz coadjuvante? E do primeiro ator branco a levar a estatueta? Estes são exemplos de como algo que rotineiramente ocorre é normalizado. Conhecemos as pessoas não brancas que levaram a estatueta e por vezes, sabemos até as indicadas, em razão do baixo número.
Nada de novo no front: o Oscar continua branco. Até quando?
Notas de Rodapé
[1] No final, o ator acabou comparecendo, a pedidos de McDaniel.
[2] Indico a série “Hollywood”, em que a atriz Queen Latifah interpreta Hattie McDaniel.
[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r8IYVbJuWds. Acesso em 16 mar. 2022.
[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wLKDfyFjQtc. Acesso em 16 mar. 2022.
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y2a1nzAciMc. Acesso em 16 mar. 2022.
[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dxxqA4NhQM4. Acesso em 16 mar. 2022.