Nosso colunista, Thiago Celli, oferece suas considerações sobre a última obra do eminente autor carioca.

Recém-chegado às livrarias, Capítulos de Política Criminal[i] é mais um dos numerosos êxitos bibliográficos de Nilo Batista. Dividido em duas partes – a primeira, composta de aulas, a segunda, de artigos –, constitui um raro exemplar de crítica criminológica do mais alto nível, coroando décadas de dedicação ao magistério superior e de resistência democrática ao irracionalismo punitivo. Ademais, o livro é também admirável não apenas pelo seu conteúdo crítico, mas por seus atributos estilísticos: opostos àquela prosa aborrecida e insossa, que parece ter sido vertida em norma de escrita forense. Isto posto, o questionamento feito por Zuenir Ventura, há mais de trinta anos, conserva máxima atualidade: “o que faz Nilo Batista fora da redação?”[ii]

Desde o início, já nas primeiras linhas da Introdução, o leitor atento poderá conferir o fundamento que orienta todo o opus do autor: um decidido afastamento em relação às “ficções gastas que reivindicam o título de ‘teorias da pena’”. Muito já se escreveu a esse respeito, mas, por desencargo de consciência, é sempre conveniente reiterar: as funções declaradas da pena, tanto as preventivas quanto as retributivas, não dispõem de evidências empíricas que atestem sua eficácia prática. Ainda assim, os penalistas convencionais seguem etiquetando de “teórico” o que não passa de rabulice bolorenta, com o objetivo único de legitimar o amplo (e seletivo) emprego da pena privativa de liberdade.

Teoria, no duro, “é um sistema hipotético-dedutivo, composto de um conjunto de assunções e de suas consequências lógicas”[iii], cuja utilidade é medida justamente pela sua capacidade de esclarecer e explicar um determinado objeto. No entanto, examinando e cotejando a maioria dos manuais de direito penal, o que se encontra é uma comistão de indigência intelectual, escassez de rigor e incompetência científica, o que nos leva à conclusão de que “teoria” é, tão-só, o apelido chic das diferentes apologias da pena.

Feita essa breve digressão e prestados os devidos elogios ao autor, passemos agora ao conteúdo do livro. Em vista da variedade de temas, épocas e fontes abordadas, convém reter o enfoque da crítica naquilo que é essencial, se não para estimular o debate, ao menos para não incorrer em bizantinismos que esgotem a paciência do leitor.

Na primeira aula, Crítica metodológica ao conceito corrente de política criminal, o autor parte das sucessivas tentativas de conceituação dirigidas à política criminal, indagando se o tema seria especificamente moderno, inaugurado por Beccaria e Feuerbach, ou se poderíamos dilatá-lo no tempo e no espaço, cruzando os limites estreitos da modernidade, ao que responde afirmativamente (p. 14). De fato, observadas as mediações necessárias, não há razões para crer que a política criminal seja uma invenção moderna, como o próprio autor demonstra, desde a Grécia Antiga, pelas recomendações de Platão, Aristóteles e tantos outros, até a violência atroz do período Inquisitorial.

Mas apesar de suas críticas conterem carradas de razão, rejeitando os diferentes conceitos de política criminal e ressaltando o desprezo que a dogmática penal tradicionalmente nutriu pelas reflexões criminológico-críticas, o conceito alternativo que oferece é pouco convincente, pois afirma categoricamente que “a política criminal é a ciência política do poder punitivo” (p. 19).

Em primeiro lugar, é mais do que consabido que certos fenômenos apresentam uma nítida especificidade política, porém o estabelecimento de uma pretensa “ciência política” é mais um entre tantos outros efeitos do processo de departamentalização[iv] e fragmentação das instâncias do saber, apartando os fenômenos políticos da totalidade social, apequenando e minguando a grandiosa tradição da teoria política. Não obstante a designação imprópria, frise-se que o autor não compactua com esse expediente fragmentário, como se constata pelo tratamento que dá ao seu objeto, mobilizando diversas áreas de conhecimento (antropologia, história, filosofia, sociologia, economia política etc.), de modo a garantir uma análise a mais complexa possível. Nesse sentido, uma possível alternativa, empenhada em preservar-se de eventuais distorções politicistas, poderia ser: “a política criminal é a teoria política do poder punitivo”. Isto, contudo, não resolveria o problema central.

Uma vez que não há prejuízo em encarar a política criminal como uma criminologia aplicada, conforme a sugestão do próprio autor (p. 17), a identificação da política criminal com a ciência (ou teoria) política acaba deixando a criminologia em maus lençóis. Ora, se a política criminal é a ciência política do poder punitivo, o que seria, então, a criminologia? Como compatibilizar o conceito de criminologia com o referido conceito de política criminal?

De modo geral, enquanto as preocupações do criminólogo são (ou deveriam ser) de cunho científico, a política criminal é mais bem compreendida em sua dimensão eminentemente prática, pois se refere a um conjunto de proposições político-interventivas em face da questão criminal. Sendo assim, a política criminal não constituiria uma ciência propriamente dita, e sim uma espécie de tecnologia social, porque expressa um programa ou plano “para a manutenção, reparo ou construção de sistemas sociais”[v], que se utiliza do poder punitivo como instrumento de efetivação. Uma conceituação mais apropriada – e, diga-se de passagem, perfeitamente condizente com o teor das posições de Nilo Batista – poderia vir nas seguintes linhas: “a política criminal é a tecnologia social que se vale do poder punitivo para garantir a manutenção, o reparo ou a construção de sistemas sociais”[vi].

Passando ao segundo problema, de corte historiográfico, o tema é objeto de longas polêmicas. Nilo Batista afirma, amparado na criminologia crítica, que “o cárcere baixo-medieval (…) não configura propriamente uma pena” (p. 42), já que destinado somente “a devedores, a réus que aguardam execução de pena corporal e a um ou outro vagabundo” (p. 40), concluindo que as penas públicas ainda estariam centradas no corpo do acusado, pela via de diversas formas de tortura – isso sem descuidar, é claro, das penas de multa e banimento. Tal entendimento provém das posições adotadas em Punição e Estrutura Social[vii](1939), de Rusche e Kirchheimer, e atualizadas no Cárcere e Fábrica[viii](1977), de Melossi e Pavarini, não obstante o hábito de temperá-las com algumas pitadas foucauldianas, o que, invariavelmente, acaba rendendo um produto de difícil digestão.

Do ponto de vista metodológico, parece equivocado fixar uma relação antitética entre penas corporais e penas privativas de liberdade, uma vez que, ao menos até meados do século XX, ambas se interpenetram[ix]. Ademais, é definitivamente falsa a alegação foucauldiana[x] de que a modernização do sistema penal teria ocorrido em algum momento entre finais do século XVIII e início do século XIX, conforme demonstrou, com extrema riqueza de fontes documentais, Pieter Spierenburg[xi]. Na verdade, o moderno sistema prisional já se acharia plenamente instalado mais de um século antes do que declarara Foucault. Quanto mais não bastasse, Guy Geltner vem multiplicando textos críticos, contribuindo positivamente para uma reorientação da historiografia prisional, a exemplo do seu formidável The Medieval Prison: a social history (2008), que já bastaria para reduzir a pó o menor arroubo de foucauldolatria. Last but not least, nenhum dos modelos supracitados é adequado para explicar as particularidades históricas lusitanas e brasileiras, mas enquanto as primeiras já estão bem encaminhadas pelo trabalho de um Miguel Romão[xii] e de uma Maria José Moutinho Santos[xiii], nós, deste lado do Atlântico, ainda temos muito por pesquisar.

Concluo recomendando enfaticamente a (re)leitura das páginas eruditas destes Capítulos de Política Criminal, desafiadoras do intelecto crítico e extremamente elucidativas. Apesar das poucas divergências teóricas alinhavadas, que em nada comprometem o conjunto da obra, o livro é mesmo um exemplar de agudeza crítica e qualidade estilística, ainda mais em tempos como estes, nos quais, em lugar de separar o joio do trigo, vemo-nos obrigados a procurar o trigo no joio.

Caso algum ponto não tenha ficado suficientemente inteligível, o debate preencherá os claros. Meus cumprimentos ao Mestre.

Notas de rodapé

[i] BATISTA, Nilo. Capítulos de política criminal. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2022.

[ii] VENTURA, Zuenir. O que faz Nilo Batista fora da redação? IN: BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

[iii] BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. 1ª. Ed. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 381.

[iv] COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo Boitempo, 2011, pp. 9-11.

[v] BUNGE, Mario. Op. cit., p. 375.

[vi] Isto, por óbvio, pensando a política criminal hegemônica, que é o objeto da crítica do livro. Políticas criminais alternativas, porquanto contra-hegemônicas, haveriam de conter o poder punitivo, mas nem por isso deixariam de conformar uma espécie tecnologia social.

[vii] RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2ª. Ed. Trad.: Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004.

[viii] MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). 2ª. Ed. Trad.: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2010.

[ix] GELTNER, Guy. Flogging others: corporal punishment and cultural Identity from antiquity to the present. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2014, pp. 19-24.

[x] “Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva.” In: FOUCAULT, Michel. 42ª. Ed. Trad.: Raquel Ramalhete. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 19.

[xi] Cf. SPIERENBURG, Pieter. The prison experience: disciplinary institutions and their inmates in early modern Europe. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2007.

[xii] Cf. ROMÃO, Miguel. Prisão e ciência penitenciária em Portugal. Coimbra: Almedina, 2015.

[xiii] SANTOS, Maria José Moutinho. A sombra e a luz: as prisões do liberalismo. Porto: Edições Afrontamento, 1999.

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