Neste ano, o Nobel de Literatura foi concedido a uma mulher, a escritora e professora francesa Annie Ernaux. O prêmio foi criado em 1901 e, desde então, agraciou 119 escritores e escritoras. Aos 82 anos, Ernaux é a 17ª mulher a receber tal honraria[1].
A total disparidade entre o número de mulheres e homens é um reflexo de uma sociedade patriarcal e, em razão disso, podemos levantar diversos questionamentos tais como: As estantes das livrarias seguem recheadas de autores, com pouco espaço para as autoras? Como o mercado editorial seleciona as futuras publicações? Quantos livros escritos por mulheres você leu este ano?
Uma premiação como esta é muito importante. Imediatamente, as pessoas começaram a procurar pelos diversos livros de Ernaux nas prateleiras das livrarias, fazendo com que fosse um assunto bastante comentado no meio literário. Ernaux, que publicou seu primeiro livro em 1974, em 2022 vivencia um boom na procura do público por seus escritos.
Um teto todo seu
Virginia Woolf, em “Um teto todo seu”[2], publicado em 1929, já refletia sobre a dificuldade das mulheres entrarem no universo literário. Segundo ela, “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu se quiser escrever ficção”. Ela ainda nos propõe a seguinte hipótese: se Shakespeare tivesse uma irmã de igual talento, teriam iguais oportunidades de trabalhar sua criatividade? Como o papel social de gênero interfere em nossas habilidades?
(…) não consigo parar de pensar, enquanto olho para as obras de Shakespeare na prateleira, que o bispo estava certo, ao menos nisto: teria sido impossível, absoluta e inteiramente, para qualquer mulher ter escrito as peças de Shakespeare na época de Shakespeare. Deixe-me imaginar, já que os fatos são tão difíceis de apurar, o que teria acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irmã incrivelmente talentosa chamada, digamos, Judith. (…) sua talentosa e extraordinária irmã, é de se supor, ficava em casa. Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto ele. Mas ela não frequentou a escola. Não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, que dirá de ler Horácio e Virgílio. Apanhava um livro de vez em quando, talvez um dos de seu irmão, e lia algumas páginas. Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis[3].
A literatura e escritoras negras
Alice Walker rebate o ensaio de Woolf, criticando o fato de que ter um espaço para se dedicar à escrita não é a realidade de mulheres negras e elas seguem fazendo a sua arte. Isso é certamente inquestionável.
Pense na diferença das realidades de Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus. Ambas escreviam sobre suas angústias, mas a primeira tinha um “quarto todo seu”, tinha um lugar tranquilo para se dedicar à escrita, ao passo que a segunda escreveu seus diários em um “quarto de despejo”, muitas vezes com fome, frio e temendo pelo futuro de suas crianças.
É preciso mencionar a disparidade de premiadas brancas e negras. Dentre as dezessete mulheres, apenas uma é negra: Toni Morrison, autora de obras como “Amada” e “O olho mais azul”.
Precisamos sempre refletir utilizando a ferramenta da interseccionalidade. Quantas escritoras negras você leu neste ano?
A escrita autobiográfica
O que estas mulheres tem em comum? Uma escrita potente, por vezes autobiográfica – ou ao menos inspirada em alguns fatos que ocorreram com as autoras -, que nos traz temas importantíssimos. Ainda assim, é uma escrita tida por alguns como “de menor valor”.
O acontecimento
Quero neste texto destacar a obra “O acontecimento”, recentemente adaptada para o cinema. Nela, Ernaux conta sua experiência pessoal de um aborto clandestino, realizado em 1963. Naquela época, o aborto era considerado um crime tão grave que as pessoas sequer pronunciavam a palavra. No livro e no filme, vemos uma jovem estudante de Letras que, de forma bem decidida, sem qualquer dúvida, não deseja ser mãe: quer se dedicar à escrita e à literatura.
A obra reflete a realidade de muitas mulheres em países em que o aborto é punido pelo Código Penal. No Brasil, em 2022, ainda temos uma forte resistência para debatermos o tema, principalmente pela chamada “bancada religiosa” do Congresso. Até nas hipóteses em que temos a possibilidade de realização do aborto em razão da lei, como, por exemplo, quando é decorrente de um estupro, vemos a tentativa de impedir a sua realização, como no caso da menina de apenas 11 anos, de Santa Catarina[4].
Na verdade, nunca foi um debate pro-choice (escolha da mulher) x pro-life (vida). Sempre foi sobre tentativa de controle de corpos femininos. Em 1943, a francesa Marie-Louise Giraud foi guilhotinada para servir de exemplo.
Simone Veil
Simone Veil, em discurso de 26 de novembro de 1974, quando era Ministra da Saúde na França, disse:
Não podemos mais fechar os olhos aos 300 mil abortos que, a cada ano, mutilam mulheres deste país, desrespeitam nossas leis e humilham ou traumatizam aquelas que a eles recorrem[5].
Foi preciso cerca de vinte e cinco horas de debate e setenta e quatro oradores para que, finalmente, a lei francesa fosse aprovada, em 29 de novembro de 1974, uma década depois do “acontecimento” de Ernaux.
A manifestação política em Ernaux
O livro de Ernaux, escrito há quase 50 anos, é ainda trata de um assunto tido como tabu na sociedade: uma mulher, que é dona do seu corpo, do seu destino, que não quer exercer uma maternidade compulsória.
O Nobel de Literatura deste ano premia uma mulher que rompeu o silêncio e escreveu, de forma autobiográfica, sobre sua dor – uma dor que certamente foi vivenciada por milhares de mulheres. A escrita desta mulher é muito mais do que literatura. É uma manifestação política.
Segundo a Academia Sueca, Ernaux foi vencedora “pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”[6].
São cerca de vinte livros, em que ela trata de temas espinhosos. A escrita desta mulher é muito mais do que literatura. É uma manifestação política.
Notas de rodapé
[1] As escritoras que foram agraciadas antes de Ernaux são: Selma Lagerlöf (1909), Grazia Deledda (1926), Sigrid Undset (1928), Pearl Buck (1938), Gabriela Mistral (1945), Nelly Sachs (1966), Nadine Gordimer (África do Sul), Toni Morrison (1993), Wislawa Szymborska (1996), Elfriede Jelinek (2004), Doris Lessing (2007), Herta Müller (2009), Alice Munro (2013), Svetlana Alexijevich (2015), Olga Tokarczuk (2018) e Louise Glück (2020).
[2] O livro ocupa a posição n. 69 na lista de 100 livros do século XX do Le Monde.
[3] WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. p. 37.
[4] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/23/menina-de-11-anos-que-foi-estuprada-em-sc-consegue-fazer-aborto-diz-mpf.ghtml . Acesso em 19 out. 2022.
[5] VEIL, Simone. Uma lei para a história: a legalização do aborto na França. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018. p. 34.
[6] https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2022/10/06/annie-ernaux-escritora-francesa-ganha-premio-nobel-de-literatura-2022.ghtml Acesso em 19 out. 2022.