O calabouço ainda pulsa

Notas sobre um Brasil ainda escravista

Quanto mais estudamos história do Brasil, mais percebemos o quanto diversos fatos nos são omitidos nos livros escolares. Quando nos tornamos adultos e começamos a buscar por mais conhecimento e aprofundamento de temas, nos deparamos com diversas lacunas do saber. Graças a minuciosas pesquisas feitas por historiadores, passamos a ter acesso a diversos fatos que fazem toda diferença para que compreendamos como chegamos até aqui. Ainda bem que temos o trabalho destes “memorialistas profissionais do que seus colegas-cidadãos desejam esquecer”[1].

Um fato que por muitas pessoas é desconhecido – e que eu somente tomei conhecimento quando comecei as pesquisas para a escrita da minha dissertação sobre a obra de Machado de Assis – é de que tínhamos, no Rio de Janeiro, um local chamado Calabouço. Construída no Morro do Castelo, em 1693, era para esta prisão que os senhores levavam seus escravizados para serem chicoteados. O “serviço” de açoite era fornecido pelo próprio Estado aos senhores e era bastante requisitado, tanto que longas filas eram formadas. Não era sequer necessário qualquer justificativa: o interesse do Estado estava apenas em angariar dinheiro.  

Havia três categorias de punição aos escravizados: 1) instrumentos de captura e contenção, aqui incluídos cordões de ferro, algemas e máscara de flandres[2]; 2) torturas e 3) surras. Os instrumentos mais utilizados eram o chicote, o tronco e os grilhões, sendo o açoite a forma mais comum de punição daquele escravizado considerado “indisciplinado” ou que cometesse algum deslize.

Além do Calabouço[3], a legislação da época permitia que o escravizado julgado e condenado fosse punido com a pena de açoite em praça pública, um pelourinho público. Havia tão somente uma limitação: não poderia exceder o número de cinquenta chibatadas ao dia, senão vejamos[4]:

Art. 60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz designar. O número de açoutes será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.

Código Criminal de 1830

Apesar da legislação permitir o número de cinquenta chibatadas diárias, o jesuíta Jorge Benci recomendava que não ultrapassasse o número de quarenta para não mutilar o escravizado. Considerava o açoite uma “medida da culpa”, razão pela qual não haveria problema em ser aplicada a punição, desde que não fosse “desumana”, o que, por si só, já é uma contradição[5].

Alguns relatos autobiográficos viraram filme, como o de Solomon Northup em 12 anos de escravidão. As costas em carne viva em razão das chibatadas eram curadas com uma mistura de sal, vinagre ou pimenta malagueta, já que, na época, não tínhamos antibióticos para prevenir uma possível infecção. Por conta de todo o tratamento desumano, a expectativa de vida de um homem escravizado, no ano de 1872 era de apenas 18,3 anos, um terço da população geral[6].

Apenas no dia 15 de outubro de 1886, com a Lei 3.330, a pena de açoites foi abolida. Até então, havia diferença na aplicação da pena caso a pessoa fosse livre ou escravizada. Era, mais uma vez, a legislação tratando de forma cruel e desumana os escravizados. Afinal, para o ordenamento jurídico, eram bens que pertenciam aos senhores, transferidos inclusive através de herança.

Na prática, infelizmente percebemos que o tratamento destinado a pessoas negras ainda é degradante e humilhante. Nesta semana, circulou nas redes um vídeo de uma mulher, chamada Sandra Mathias, que pegou a coleira de seu cachorro e partiu para cima de um homem negro, para chicoteá-lo. Ela já tinha anteriormente mordido a perna de uma mulher. A vítima, Max, disse, com toda razão: “Ela me tratou como se eu fosse um escravo”[7]. Há algumas semanas, outro vídeo chocante: cinco policiais se revezam e imobilizam e espancam um homem negro[8]. Estes são, infelizmente, dois exemplos de violências diárias cometidas contra pessoas negras.

Lilia Schwarcz[9], ao escrever sobre o autoritarismo brasileiro, assim fala sobre o sistema escravocrata:

A escravidão foi bem mais do que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência e criou uma sociedade condicionada pelo patriarcalismo e uma hierarquia muito restrita.

Encerro com uma reflexão tirada do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, que vira hino oficial do Dia da Consciência Negra:

Será que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu?

Notas de rodapé

[1] Assim bem define Eric Hobsbawn os historiadores, no livro Era dos extremos, citado em SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das letras. p. 229.

[2] A máscara de flandres, colocada na face, impedia que a pessoa escravizada conseguisse comer cana, rapadura ou engolir pepitas e pedras preciosas. GOMES, Laurentino; SILVA, Alberto da Costa e. Escravidão. Rio de Janeiro, RJ: Globo Livros, 2019. p. 306.

[3] O Calabouço foi desativado em 1838 e virou uma ala de correção construída com a mão de obra de cativos. Atualmente, o Museu Histórico Nacional e o Aeroporto Santos Dumont ocupam o local.

[4] Artigo 60 do Código Criminal de 1830. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm#:~:text=Nenhum%20crime%20ser%C3%A1%20punido%20com,Art. Acesso em: 13 abr. 2023.

[5] Idem, p. 308.

[6] Idem, p. 261.

[7] Matéria disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/04/12/quem-e-a-ex-jogadora-de-volei-que-chicoteou-motoboy-e-mordeu-perna-de-uma-entregadora-no-rio. Acesso em 13 abr. 2023.

[8] Matéria disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/24/homem-negro-e-imobilizado-e-espancado-por-pms-apos-abordagem-em-sp-5-agentes-se-revezaram-durante-as-agressoes.ghtml. Acesso em: 13 abr. 2023.

[9] SCHWARCZ, op. cit., pp. 27-28.

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