O Carnaval da luta de classes

Quem desfruta do maior espetáculo da terra no país de raízes escravocratas?

No último final de semana, acompanhei pela televisão os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Como refleti no último texto da minha coluna, o Carnaval e o samba são símbolos de resistência da população negra. Acrescento agora a reflexão de Beatriz Nascimento: as Escolas de Samba são os quilombos[1]. No entanto, podemos verificar no maior espetáculo da terra a reafirmação da luta de classes presente no Brasil.

Os camarotes na Sapucaí são um exemplo disso. Famosos convidados desfilam por ali, comendo e bebendo no open bar de um espaço inacessível para quem é trabalhador, a menos que esteja – perdoe-me a redundância – a serviço. Li a notícia de que uma famosa teria recebido o exorbitante valor de dois milhões de euros (!!!) para fazer uma presença VIP de três horas em um camarote. Neste mesmo camarote, percebemos a exploração da mão-de-obra: funcionários recebem o ínfimo valor de duzentos reais por noite[2].

Qual a relação desta celebridade com o Carnaval? Nenhuma. No entanto, a sua imagem foi requisitada e disputada por agregar status, em um país que cultua celebridades e a vida instagramável e normaliza a luta de classes. Outro questionamento: já pensou nas diversas ações sociais que poderiam ser feitas com este valor, mas que foram utilizadas para esta banalidade?

Enquanto no camarote a burguesia desfila, come, bebe e assiste aos shows, sem na maioria das vezes sequer se importar com as Escolas de Samba que passam a poucos metros de distância, a massa assiste ao maior espetáculo da terra nas arquibancadas. Há uma delimitação territorial facilmente perceptível, como havia nos tempos de Lima Barreto, em que os meios de transporte eram divididos por classes[3].

Em Salvador, nos blocos que levam multidões, temos o cordão nos trios elétricos, que tem a função de separar quem está de abadá e os pipoca. Separando os dois grupos está o cordeiro, que, de acordo com o Sindicordas (Sindicato dos cordeiros) recebe o valor mínimo de sessenta reais, incluídos transporte[4]. Estas pessoas recebem água e biscoitos, ficam em pé por horas e são discriminadas, além de sofrerem abusos, como ocorreu no caso de Gabi Prado[5], que se viu no direito de tocar no corpo de uma cordeira, fazendo “brincadeiras” que, na verdade, eram assédio. Uma postura, como bem refletiu a intelectual Carla Akotirene[6], patriarcal, racista e capitalista.

Nos desfiles das Escolas de Samba, a maioria das rainhas de bateria são famosas, brancas, sem qualquer relação com a comunidade e samba no pé, que marcam presença em ensaios às vésperas do desfile. Este lugar de destaque deveria inquestionavelmente das mulheres daquela comunidade, como faz a Beija Flor de Nilópolis. As famosas que realmente quiserem desfilar, que o façam em outros postos: como destaques no chão ou em carros.

Não posso deixar de mencionar o fato de que as Escolas de Samba trazem para a Avenida a história do Brasil e, por meio dos enredos, temos contato com diversos temas extremamente necessários. A Beija Flor abriu alas para o cordão dos excluídos e trouxe para a Sapucaí o Dois de Julho, tão celebrado na Bahia, por marcar a expulsão dos portugueses e independência. A Viradouro nos brindou com a história de Rosa Maria Egipcíaca, escravizada ainda criança, primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil. Tinha visões que causavam temor à Igreja, que a considerou bruxa, enquanto o povo a considerava santa.

E por falar em , o que dizer da relação direta que as Escolas de Samba tem com as religiões de matriz africana? Naqueles momentos de desfile, pessoas das mais diversas crenças entram em contato com a cultura e saberes que vieram de África e que devem ser respeitados. Em 2022, a Grande Rio emocionou levando Exu para a Avenida, abrindo caminhos e vencendo o campeonato. No entanto, penso que a mente das pessoas ainda não se abriu para o conhecimento, a informação e o respeito. Parece que as pessoas deixam de ser racistas religiosas apenas durante o desfile, cantando o samba-enredo sem compreender a magnitude do seu significado. O mesmo fenômeno acontece na noite de Ano Novo, em que milhares de pessoas jogam ao mar flores para Iemanjá e no decorrer do ano, praticam racismo religioso.

É como se o Carnaval trouxesse a ilusão de que vivemos de fato em um país da democracia racial, despido de qualquer luta de classes. Tom Jobim, em A felicidade, traz na letra a alegria do pobre, que trabalha o ano inteiro para viver a ilusão do Carnaval, vendo aquele sonho virar cinza na quarta-feira. Vou além: o nosso olhar crítico, de quem tem consciência de raça, gênero e classe, não nos permite sequer viver a ilusão do Carnaval. Não nos ofuscamos pelos brilhos e paetês. Isso porque nossa consciência de raça, gênero e classe está sempre latente.

O maior espetáculo da terra é símbolo de resistência, luta, história do Brasil e diáspora. No entanto, percebemos o quanto temos a caminhar, se quisermos de fato arrancar do solo de nossa terra as raízes escravocratas que insistem em crescer.

Notas de Rodapé

[1] Documentário Orí, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hL-A29ILa5Y. Acesso em 22 fev. 2023.

[2] Disponível em: https://br.vida-estilo.yahoo.com/cach%C3%AA-milion%C3%A1rio-gisele-choca-funcion%C3%A1rios-034000839.html Acesso em 22 fev. 2023.

[3] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Da minha janela vejo o mundo passar: Lima Barreto, o centro e os subúrbios. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/8RjyzQjS7RVHFMDhxRQj8nG/?lang=pt. Acesso em 22 fev. 2023.

[4] Disponível em: https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/17/cordeiros-de-carnaval-na-bahia-reclamam-de-discriminacao-e-pagamento.htm. Acesso em 22 fev. 2023.

[5] Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/gabi-prado-posta-video-sarrando-com-cordeira-e-causa-polemica/. Acesso em 22 fev. 2023.

[6] Akotirene, autora de “Interseccionalidade”, escreveu as referidas reflexões em seu Instagram.

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