O doce fel do Xou da Xuxa

60 anos da apresentadora que praticou blackface, brincou de "índio" e não teve Paquitas negras

Quem viveu sua infância durante os anos 80 e 90 certamente assistiu ao Xou da Xuxa, programa apresentado por Xuxa Meneghel entre os anos de 1986 e 1992. Apresentado de segunda a sexta pela manhã, o infantil logo se tornou bastante popular, a ponto de ser considerado o de maior sucesso na história da televisão brasileira[1].

Tudo o que a apresentadora – que recém completou 60 anos – lançava, era lucrativo: bonecos dos personagens de seu programa, como Dengue, Praga e Xuxo, além de, lógico, várias “Xuxinhas”, sandálias, lancheiras, perfumes, revistas, álbum de figurinhas… ter o “selo de qualidade” Xuxa era sinônimo de estouro de vendas.

Ao longo da carreira, lançou quase trinta álbuns de estúdio e abocanhou uma coleção de discos de platina, ouro e diamante. O primeiro, Xou da Xuxa, de 1986, superou todos os demais, incluindo o de Roberto Carlos. Até hoje suas músicas tocam e ela Em festinhas de aniversário, por exemplo, quem nunca ouviu o “Parabéns da Xuxa” na hora de cortar o bolo? Na indústria cinematográfica também pegou sua fatia: o filme Lua de Cristal, por exemplo, até hoje ocupa a 28ª posição no ranking das maiores bilheterias do cinema nacional.

nO que precisamos refletir é nas inúmeras problemáticas que aconteciam em seus programas. Já citei, em texto anterior, a música Brincar de índio (cuja letra é inaceitável), em que Xuxa colocava um cocar e chegou a dançar, em seu programa, batendo a sua boca e fazendo movimentos no estilo “dança da chuva”, na presença de indígenas, que a tudo observavam perplexos aquele estereótipo[2].

O comportamento de Xuxa, apresentadora de um programa infantil, não condizia com a sua função. Diversos são os momentos em que ela demonstrava total falta de paciência com as crianças (quem não se lembra do “senta lá, Claudia”?) e foi aí que surgiram as assistentes de palco, chamadas Paquitas.

Muitas meninas tinham o sonho de ser Paquita. Em todos os concursos, diversas eram as candidatas. As escolhidas, no entanto, tinham um “padrão”: eram brancas e loiras. O Xou da Xuxa acabou, vieram o Xuxa Park e o Planeta Xuxa. Nada mudou ao longo de duas décadas de programas. Todas as Paquitas apresentavam o mesmo tipo físico: brancas e magras.

Fico pensando em quantas meninas negras tinham o sonho de trabalharem com a Xuxa e percebiam, concurso após concurso (afinal, foram quatro “gerações”: dos anos 80 ao 2000) que não tinham a cor da pele para serem uma Paquita. No final, ao contrário da música da Xuxa – aquela que diz “sonhos sempre vem para quem sonhar” – o sonho só se concretizava se você fosse uma menina branca. Adriana Bombom, por exemplo, era assistente da Xuxa, mas jamais foi Paquita. No Altas Horas em homenagem aos 60 anos da apresentadora, a atriz Erika Januzza foi vestida de Paquita: “estar aqui hoje, vestida assim, é um momento histórico para mim”[3].

A branquitude não consegue compreender a importância da representatividade, em uma sociedade racista. Ainda não temos a presença de pessoas negras em todos os espaços. Para as crianças, ver pessoas na televisão que tenham a mesma cor da pele que a sua faz total diferença. Quando vemos, por exemplo, jornalistas como Gloria Maria e Maju na televisão, meninas e meninos negros podem sonhar que, um dia, poderão de fato estar ali. O mesmo aconteceria se houvesse Paquitas negras.

O lindíssimo curta Cores e botas[4], de Juliana Vicente retrata exatamente isso: a frustração e dor de uma garotinha negra chamada Joana, fã da Xuxa, que percebe que, por mais que seja incrível, jamais será Paquita da Xuxa. A menininha inclusive ensinou a coreografia para a sua amiga, uma menina branca, que passa na audição e ela, não. A mãe, tenta animá-la com uma frase da Xuxa: “lembra? Querer é poder”. Ela, ainda pequena, já consegue compreender como o racismo atua na sociedade: “Não, mãe. Eu não sou loira”.

É importante ressaltar que representatividade é bem diferente de tokenismo[5]. Fazer concessões a determinados indivíduos negros para evitar acusações de racismo e desigualdade é apenas reforçar o argumento de que há práticas racistas e que não se deseja mudar o sistema de privilégios concedidos a pessoas brancas.

Em entrevistas recentes, a apresentadora tenta justificar o injustificável: diz que teve uma Paquita negra (uma!!!!) nos Estados Unidos e queria ter Paquitas negras no Brasil, mas a diretora na época vetou. É o corriqueiramente que acontece quando pessoas pedem desculpas após atos racistas e falam: “o racismo é estrutural”. Ela, a apresentadora do programa mais rentável da televisão brasileira, poderia sim ter mudado o cenário. No entanto, nada fez. Foi omissa e, consequentemente, conivente.

Além de não ter selecionado nenhuma menina negra para ser uma de suas Paquitas, Xuxa ainda praticou racismo recreativo. No especial de fim de ano de 1992 da Globo, ela participa de um quadro com Grande Otelo, em que canta e dança com seu rosto pintado de preto e uma peruca black power: pratica o blackface. Na entrevista com Pedro Bial, ele diz que era “uma graça de musical”, “muito bonito o número, mas hoje seria chocante”. Na verdade, é chocante em qualquer tempo: ela representou um estereótipo de uma mulher negra. Inacreditavelmente, diz que era uma “homenagem”[6].

Discordo de Pedro Bial quando, nesta citada entrevista, diz que não podemos olhar uma época com os olhos de outra, trazendo como exemplo para a sua fala Monteiro Lobato (em um próximo momento falaremos dele). Na década de 1990 época já não era aceitável o blackface – aliás, nunca foi, desde que surgiu, por volta de 1830, nos Estados Unidos. O racismo nunca deve ser justificado ou aceito. É através de falas como a de Bial que percebemos quem seriam os abolicionistas e os escravagistas da época, quem seriam os coniventes com um sistema de opressão e quem lutaria contra.

Encerro o texto desta semana propondo reflexões: quem eram os baixinhos e baixinhas que se viam representados naquele programa? Por mais que uma criança negra gostasse do Programa, cantasse as músicas da considerada Rainha e assistisse aos seus filmes, ela já, desde cedo, sabia que o “seu lugar” (aquele que o racismo lhe impõe) não seria ao lado da Xuxa, como Paquita. Assistir ao programa seria agridoce, um misto de doce e de fel para estas crianças. Como disse Bombom, no já citado Altas Horas: “eu sou de orfanato e lá a gente assistia ao Programa da Xuxa. E meu sonho era ser Paquita, mas o meu sonho estava muito longe – até porque, as Paquitas eram loiras e eu sabia que eu não poderia estar ali pela cor, por eu ser negra”. No final, não bastava querer se a sua cor da pele não fosse branca.

Notas de rodapé

[1] Antes de ir para a Globo, Xuxa apresentou durante três anos o programa Clube da Criança na extinta TV Manchete.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=88R12RcZG2U. Acesso em 30 mar. 2023.

[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mw0wDtYCFvc. Acesso em 30 mar. 2023.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ll8EYEygU0o&t=836s. Acesso em: 30 mar. 2023.

[5] Audre Lorde discorre sobre o tema no ensaio Idade, raça, classe e sexo: as mulheres redefinem a diferença. Disponível em: LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 146.

[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EB_5EMeSN6g&t=1823s. Acesso em: 30 mar. 2023.

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