Dando continuidade à discussão do ensaio anterior[1], tratemos agora de uma outra dimensão do punitivismo, entendido como “a crença na punição enquanto solução universal para a conflitualidade social”[2]. Para elucidá-la, principiemos com duas breves narrativas fictícias, a primeira, consumada em um museu, a segunda, em uma prisão.
Objetos personificados
Em uma grande capital brasileira, uma multidão atendia à celebração do bicentenário de um prestigiado museu. Abertos os portões, antes mesmo que pudessem acessar as galerias do edifício histórico, os visitantes defrontaram-se com um fenômeno dos mais mirabolantes: as obras de arte, até então inanimadas, desataram a falar! E os que lá permaneceram, ouviram o seguinte:
“Saudações!
“Somos o corolário da engenhosidade humana; o produto do trabalho dos mais notáveis entre os vossos antepassados. Havendo incorporado toda a vossa suntuosidade, temos sido obsessivamente coletadas e acumuladas no curso das últimas eras, ao que passamos a constituir, igualmente, a prova cabal da vossa suprema perversidade. Afinal, o que estais prestes a admirar não é outra coisa senão o resultado de séculos e mais séculos de invasões, colonizações e genocídios, incessantemente estimulados pela vossa descomunal avidez.
“Adiante, herdeiros desmemoriados! Senti-vos livres para percorrer estas galerias e reverenciar o espólio da vossa rapinagem. Mas recordai as palavras de um astuto irlandês, que, pouco antes de perecer, afirmou sermos todas uma inúteis[3] – e poucas vezes um elogio tão sublime foi tão habilmente ocultado sob a aparência de um insulto, porque somos, de fato, um fim em nós mesmas. Mais do que isso: somos a mais bela entre todas as vossas mentiras[4]. Tanto é assim que nossos nobilíssimos criadores, todos extintos, sempre e quando forem lembrados, só o serão por referência à nossa existência.
“Afinal, quem entre vós sabeis quanto tempo foi empenhado para nossa objetivação? Que instrumentos e matérias-primas foram empregados no processo? Que relações sociais determinaram tal concretização? Sob quais influências viemos à lume? Sabeis bem que só reconheceis aquilo que encontrais imediatamente à ponta de vossos narizes: nós mesmas, que, porquanto imortalizadas, temos, no tempo, o nosso principal aliado. Vós, no entanto, apenas de passagem pelo mundo, já não podeis dizer o mesmo…”
Pessoas objetificadas
Em outro canto da capital, suficientemente afastado do centro da cidade, familiares esperam, em fila indiana, a autorização para entrarem no presídio, pois é dia de visitação. Do lado de fora, ninguém é capaz de ouvir coisa alguma, porém, felizmente, um dos poucos cativos alfabetizados ocupou-se da tarefa de ecoar, a seu modo, a voz reprimida de seus companheiros de cárcere:
“Jamais fomos nada, mas, desde que aqui ingressamos, é como se tivéssemos nos tornado menos que nada. Trajados uniformemente e destituídos de nome e sobrenome, cada um de nós vai vivenciando, aos poucos, a dissolução da própria identidade. Avaliados, medidos e pesados, achamo-nos reduzidos a uns poucos números, contidos em uma listagem em perpétua expansão.
“Desde o primeiro dia no cárcere, aprendemos que estão redondamente enganados os que supõem que o inferno não passa de uma ilusão bíblica, disseminada para instilar o medo no coração dos homens. Não ignorem o testemunho sincero e autorizado de centenas de milhares de prisioneiros: o inferno existe, sim, pois residimos nele. É para cá que encaminham os ‘punidos e mal pagos’[5], aqueles que, desde sempre, foram vistos como uma espécie de ‘excremento social’[6]. Tidos por bestas selvagens e tratados como coisas, há muito deixamos para trás toda e qualquer esperança: só sobrou o medo.
“Para além desses muros, a vida segue seu curso natural: com o passar dos anos, as visitas vão se tornando mais e mais escassas, até que, sem prévio aviso, simplesmente se esvaem, juntamente com a memória dos rostos outrora familiares. Aos que, porventura, forem agraciados com a tão almejada liberdade, logo se darão conta de um fato insofismável: ninguém precisa de um egresso do sistema carcerário entre seus amigos, colegas ou funcionários, e é por isso que a maioria acabará voltando para cá, onde o tempo, sempre o tempo, é o nosso implacável algoz.”
O caráter fetichista da punição
As narrativas fictícias acima bem podem servir de mediação para que estabeleçamos um instigante paralelo.
Museus são espaços de cultura, inteiramente consagrados ao armazenamento, à preservação e à valorização de coisas que, em razão de sua relevância cultural, estamos convictos de que devemos enaltecer. Prisões, em contrapartida, são espaços de violência, voltados ao armazenamento, à degradação e à desvalorização de pessoas que, em virtude de sua suposta periculosidade social, concluímos que devemos segregar. Bem entendido: coisas são elevadas à condição de entidades, uma vez que representam a grandeza da civilização, ao passo que pessoas são rebaixadas ao status de coisas, posto que encarnariam a degeneração conducente à barbárie.
Contudo, cabe assinalar que civilização e barbárie jamais estiveram totalmente apartadas uma da outra: ambas se entrecruzam na marcha contraditória da história humana, que, invariavelmente, progride mediante o emprego de métodos bárbaros. Em um ensaio de incontestável lucidez, Walter Benjamin (1892-1940), que estava perfeitamente ciente dessa dinâmica histórica, declarou[7]: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie.”
Para demonstrá-lo, note-se que as duas instituições – museus e prisões – não apenas assumiram uma nova forma, sob a égide do modo de produção capitalista, como também foram e seguem sendo guarnecidas pelos desenvolvimentos tecnológicos levados a cabo pela mesmíssima indústria do controle do crime. Em uma chave dialética, a própria existência de museus e prisões – instituições aparentemente tão díspares – cria a demanda por uma enorme coleção de mercadorias: detectores de metais, sensores de movimento e temperatura, câmeras de vigilância, blindagem e gradeamento, armas de diversos tipos, veículos operacionais, sistemas informáticos de segurança, uniformes táticos e assim por diante.
Voltando os olhos para a Antropologia, acha-se uma importante pista analítica: o conceito de fetiche, entendido como um “objeto a que se atribui poder sobrenatural”, podendo “ser animado ou inanimado, confeccionado pelo homem, ou ser usado em sua forma natural”[8]. Não por acaso, Marx (1818-1883), apropriando-se criticamente do conceito, dedicou-lhe algumas páginas preciosas no livro I de O Capital (1867)[9]:
(…) Na sociedade capitalista, objetos materiais têm certas características que lhes são conferidas em virtude das relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem por natureza.
Nos domínios da fé, da espiritualidade e da mitologia, é antiquíssima a crença nas propriedades sobrenaturais de determinados objetos inanimados, quase sempre concedidas por uma divindade e atuando como uma espécie de amuleto ou arma em benefício de seu portador. Nesse sentido, quando Marx afirma que a sociedade capitalista é marcada pelo fetichismo da mercadoria, ele alude à aparência mistificadora que as mercadorias assumem, imediatamente, aos olhos dos consumidores: coisas que detêm, em si e para si, um valor intrínseco.
Pode-se passar a tarde inteira em um museu ou em um shopping center, travar contato com uma imensidão de mercadorias, sem, com isso, indagar, nem por um instante sequer, qual a natureza das relações sociais de produção que determinaram sua concretização. Admira-se uma pintura, e até se observa o nome do autor, mas não a multiplicidade de processos sociais, de complexidade vária, que possibilitaram que a obra viesse à lume. O raciocínio se aplica a pinturas renascentistas, celulares de última geração, guloseimas açucaradas e quanto mais se queira. Adstritos aos domínios da imediatidade, do empirismo vulgar, só o que vemos são relações entre coisas, entre dinheiro e produtos ou serviços, e não as relações sociais reais ocultadas pelo fetichismo.
Extrapolando-se os limites da análise marxiana, identifica-se uma forte componente fetichista no punitivismo contemporâneo: a pena privativa de liberdade, essa entidade a que se atribui toda sorte de poderes sobrenaturais (i.e. as funções declaradas da pena), é proclamada como o instrumento universal de combate a uma outra entidade, o crime, que possui propriedades tão mágicas que é capaz de abarcar condutas que não guardam qualquer similaridade umas com as outras. Paralisados diante da imediatidade do fenômeno, os apologistas do poder punitivo só têm olhos para crimes e penas, sem qualquer consideração mais aprofundada sobre os processos de criminalização e as relações sociais reais que os determinam. Sob o império do fetichismo da punição, crimes e penas aparecem como entidades (sobre)naturais, a-históricas e eternas, em prejuízo dos setores mais vulneráveis da população. Eis o feitiço do qual qualquer espírito crítico deve se libertar.
Notas de rodapé
[1] Cf.: https://www.introcrim.com.br/post/punitivismo-e-alienacao
[2] Idem.
[3] “All art is quite useless.” In: WILDE, Oscar. The picture of Dorian Gray. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 4.
[4] “L’art est le plus beau des mensonges.” In: DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche et autres écrits. Paris: Gallimard, 1971, p. 67.
[5] Cf.: BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
[6] “The criminal is thus, to tell the truth, no more a social product than he is a natural product; he is – forgive me the word – a social excrement.” In: TARDE, Gabriel. Penal philosophy. Trad.: Rapelje Howell. Boston: Little, Brown, and Company, 1912, p. 222.
[7] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245.
[8] WILLEMS, Emilio. Dicionário de sociologia. São Paulo: Editora Globo, 1950, p. 60.
[9] GERAS, Norman. Literature of revolution: essays on marxism. London: Verso, 2017, p. 59.