O grande irmão e a sociedade racista

O olho que tudo vê entrega o mito da democracia racial

É impossível negar o alcance que a televisão tem, principalmente no chamado “horário nobre”. Milhões de pessoas, neste momento, assistem aos canais abertos e, há 23 anos, em janeiro, começa a exibição do Big Brother Brasil.

Nota: assim como Machado de Assis fazia em seus textos, deixo a advertência ao leitor e à leitora: este texto não é sobre o reality show ou sobre a Globo. É sobre episódios de racismo que acontecem na “casa mais vigiada do país” e que deveriam – no mínimo – causar indignação em quem assiste.

O racismo não aconteceu apenas nesta edição. Ao fazer uma breve pesquisa sobre o programa, você encontrará diversos episódios. Em 2016, por exemplo, a esponja para lavar louça” foi um boneco com cabelo black power. O “utensílio” até hoje é comercializado em sites, em um valor que girava em torno de R$150,00.

O cabelo de pessoas negras, associado a qualidades negativas, como: cabelo ruim, cabelo pixaim e cabelo duro são alguns exemplos de como o racismo atua[1]. Empresas contratam pessoas com boa aparência, deixando de forma implícita (ou explícita, para um bom entendedor) o seu racismo: não contratarão pessoas negras que tenham cabelo black ou usem tranças. Há diversos casos de mulheres negras que tiveram que alisar seus cabelos para serem contratadas ou então que são coagidas a cortarem seus dreads para continuar no emprego[2]. Isso causa inegavelmente dor e traumas.

O cabelo de pessoas negras é símbolo de luta, resistência e identidade. Babu Santana, na edição de 2020, levou seu pente garfo para o programa. “Antigamente, você não podia usar cabelo comprido, que era ligado à sujeira ou a uma coisa feia ou a uma coisa subversiva. Quando você pega o pente e abre o black, o black é a coroa, o pente é a libertação”, disse ele, explicando para algumas participantes brancas[3]. No entanto, em outro momento do jogo, a participante Ivy Moraes debocha: “quem penteia cabelo com um trem desse”? Ela cai na gargalhada e prossegue: “Eu nunca vi pente de cabelo assim na minha vida”[4].

A estética considerada padrão, que ditou a moda por muito tempo foi a branca, eurocêntrica. Pessoas negras, por exemplo, eram consideradas como de beleza exótica. Apenas há pouco anos a indústria de cosméticos começou a se preocupar em trazer produtos para atender aos diversos tons de pele. O que pode ser óbvio – afinal, não há apenas uma cor de pele – era totalmente desconsiderado. Não havia qualquer representatividade. De produtos de cabelos a maquiagem, passando por curativos, a indústria finalmente passou a atender às demandas da população negra. No entanto, nesta mesma edição de 2020, a participante Gizelly Bicalho chama de “barro” a base usada por Thelma Assis, rindo com outras participantes. Visivelmente constrangida, ela ainda fala: “ué, a minha base é marrom”[5].

nUm ano depois, no mesmo reality, o participante Rodolfo Matthaus disse que a sua peruca da fantasia de homem das cavernas era igual ao cabelo black de João Pedrosa. Um caso de racismo recreativo exposto em rede nacional, que retratou na forma de “piada”, uma característica estética da negritude, na tentativa de inferiorizá-la[6]. Quantas meninas e meninos negros, nas escolas sofrem racismo recreativo em razão de seus cabelos? Há diversos relatos de agressões verbais por parte de colegas e também por parte das professoras, como no caso de uma menina de apenas 4 anos que foi a única aluna que não teve seus cabelos lavados pela professora, ao “argumento” de que era um cabelo duro. Depois disso, a menina passou a pedir para a mãe alisar seus cabelos[7].

Estes são apenas alguns casos de racismo recreativo. No entanto, sabemos que o racismo se manifesta de diversas formas, por exemplo, com relação às religiões de matriz africana. O Brasil ainda não é uma democracia religiosa e bem lembra Sidnei Nogueira que, desde a invasão portuguesa, a religião cristã foi usada como forma de conquista, dominação e doutrinação[8]. O professor, babalorixá e doutor em semiótica, ensina[9]:

O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e rituais.

Na edição deste ano, ainda em andamento, os participantes Key Alves, Cristian Vanelli e Gustavo Benedeti disseram – dentre outras coisas – que tinham medo de Fred Nicácio, por conta de sua religião. Rodney William, babalorixá, doutor em Ciências Sociais, ensina: “Respeito é a palavra-chave. Nenhum símbolo religioso deve ser tratado com leviandade, seja da crença que for”[10].

Voltando um pouco no tempo, há 4 anos, o BBB consagrou vencedora uma racista. Na edição de 2019, a que contou com mais participantes negros até então, Paula Sperling foi a vencedora. Além do racismo recreativo e do uso de diversas expressões racistas, ela praticou racismo religioso. Se o vencedor é escolhido pelo público, concluímos que há pessoas que seguem dizendo que tudo o que relatei aqui é mimimi. Inclusive, o apresentador da época, Tiago Leifert, no discurso final no mínimo problemático, disse: “vence o BBB 19 a pessoa que teve a audácia de ser imperfeita. A pessoa que na frente de todo mundo teve a ousadia de ser real em 2019”. Em outras palavras: em uma sociedade racista, venceu uma pessoa que não tem medo de ser racista.

Alguns falarão: “o que esperar da Globo lixo?” Eu vou além: se, diante do olho que tudo vê (para usar a referência ao livro 1984, de Orwell), atos racistas são cometidos (e ainda justificados pelos espectadores), o que dirá quando nenhum holofote está direcionado? E aí, vem a reflexão: quando, de fato, teremos uma sociedade antirracista?

Notas de Rodapé

[1] Inclusive, em um texto anterior, comento o fato de que, ainda hoje, pessoas se fantasiam no Carnaval de “nega maluca”, um exemplo de racismo recreativo.

[2] Leia sobre o racismo sofrido por Rachel e Chastity por conta dos cabelos em: https://esportes.yahoo.com/noticias/esta-mulher-negra-foi-informada-que-deveria-alisar-o-cabelo-para-conseguir-um-emprego-104546982.html. Acesso em: 23 mar. 2023.

[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d5PCdptqxKU. Acesso em 23 mar. 2023.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zWzPbA2WmdM. Acesso em 23 mar. 2023.

[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-wYqOB9xuAE. Acesso em 23 mar. 2023.

[6] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra, 2019. p. 20.

[7] Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/03/por-que-a-professora-so-nao-quis-lavar-o-cabelo-da-unica-crianca-negra.html Acesso em: 23 mar. 2023.

[8] NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra, 2020. p. 36.

[9] Idem. p. 89.

[10] WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra. 2021. p. 177.

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